17 dezembro 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #8



Coisas da Razão

Sei exatamente o momento em que perco a razão. Não é no instante em que elevo a voz, em que as palavras me saem em catadupa, sem controlo, sem conteúdo. Palavras soltas, desconexas e duras. Não. A razão foge quando depois, ao voltar a acalmia, não se pede desculpa. Aí sim, a razão falha por completo.

Mãe e filho zangam-se de vez em quando. Tem mesmo de ser. Digo muitas vezes ao Tiago que só me zango com ele porque o adoro! Senão... não queria saber. Era-me indiferente se ele se porta bem ou mal, se ele é justo ou injusto, se ele é responsável ou irresponsável. Quem ama cuida, quem gosta importa, mas mesmo quem quer bem nem sempre age... bem!

Nos dias piores da nossa história de mãe e filho fazemos as pazes ao deitar. Sentamos na sua cama e, de imediato, o Tiago sabe que livro ir buscar à estante: “Quando a Mãe Grita” de Jutta Bauer. A história do pinguim que se desfaz em pedaços perante um grito da sua mãe é parte integrante do nosso amor, meu e do Tiago. Juntos, acompanhamos a mãe pinguim a reunir os pedaços do seu filho, cosendo-o peça a peça, e reconstruimos ali os nossos corações magoados e estilhaçados. O Tiago não entende isto – nenhum filho entende – mas as zangas doem-nos mais a nós. Somos nós que gritamos, castigamos, impomos limites e regras e, depois, somos nós que sofremos, encolhidos na dúvida persistente entre o que está certo e errado, nesta coisa complicada de educar. Para os filhos, somos donos maquiavélicos das suas vontades. Para nós, somos pais incompreendidos mas empenhados em dar o melhor de nós pelos nossos filhos... incluindo os gritos mais sonantes e as penas mais dramáticas. Ou talvez não. Talvez essas sejam, apenas, as febres do momento, o descontrolo da irritação, o cansaço e o medo. Há sempre uma boa dose de medo a ensombrar isto tudo. Medo de falhar ou de decidir atos sem remendos possíveis. Medo do “remediado está”.

Se há lição que o Tiago me dá, tantas e tantas vezes, é aquela que me diz exatamente o instante em que ele resgata a razão toda para o lado dele. É quando umas horas depois de um momento mau no nosso amor, volvido o período de silêncio, erguidas as tréguas, ele me diz “Desculpa, Mãe”. Com essas duas palavras leva-me tudo: o coração em estilhaços minúsculos, o nervoso miudinho na barriga, a cabeça a zumbir irritantemente, as regras exageradas, os “nunca mais” e o “tem de ser”, o “vais ver” e o “não voltas a”.

“Desculpa, Mãe” e lá me ganha ele outra vez. Por todas as justificações que eu tenha, por todas as falhas que ele repita, por todas as preocupações que eu alimente, por todos os limites que ele ultrapasse, nada resta com a desculpa. Ali, perante tamanha frase, sinto- me pequenina e frágil, uma mãe pinguim que partiu o filho em pedaços com um grito.
“Desculpa, filho” e sossega-se o corpo, arruma-se a cabeça e até parece que enfrentámos o medo, que juntos acabámos com ele de vez. Naquele momento nosso ousamos acreditar que não haverá uma próxima vez, que o nosso amor não guardará mais zangas, que nunca mais eu terei de ser a mãe que impõe e ele o filho que dispõe. Mas, se houver próxima vez, se nos zangarmos porque nos amamos, se eu soltar um grito e ele uma palavra azeda, que seja eu, dessa vez, a ficar com a razão quando, minutos depois, o abraço e lhe ganho com um “Desculpa, filho”.



in Lx4kids Dezembro 2014

31 outubro 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #7





Propriedade Privada

Com as coisas da vida, aprendemos a tornar os filhos menos nossos e mais deles próprios. Tornamo-nos mais tolerantes à distância, à ausência, aquilo que eles fazem, vivem, provam, passam a gostar… sem que nós vejamos, sem que nós sejamos parte disso.

Quando o pai e a mãe não vivem na mesma casa, os filhos passam a ter duas rotinas paralelas que se unem nas coisas comuns: a escola, as atividades extra e aquilo que eles são em qualquer lado, em qualquer casa e em qualquer momento, e que não muda com as circunstâncias. A vida de uma criança com duas casas – a do pai e a da mãe – é feita de adaptações quotidianas que vão muito além das rotinas. Se há coisa que identifica o ser criança é o querer tudo, querer muito e querer já. Quando o pai e a mãe são pais mas não são um casal, a primeira coisa que uma criança aprende é que querer muito e querer já nem sempre é querer tudo. Então entendem que na casa do pai querem tudo do pai: a comida que ele faz melhor, a brincadeira preferida a dois, os abraços mais apertados daqueles braços; enquanto na casa da mãe querem tudo da mãe: a comida preferida, outras brincadeiras escolhidas a dois e outros braços para iguais abraços.

Ser mãe, e pai, tem muito de possessividade. Os filhos são nossos, nascem nossos, querem-se nossos e tudo o que fazem e os sítios que vão são escolhidos, decididos e autorizados por nós. Então, ser mãe, e pai, de uma criança que tem duas casas exige uma reaprendizagem total dessa história da possessividade. Os filhos passam a ser posse de dois e não de um casal. Os filhos são “meus” e “teus”, sem deixarem de ser “nossos”. E é então que a mãe e o pai aprendem que podem querer muito e querer já, mas isso não significa que possam querer tudo. O “tudo” começa e acaba na casa de cada um. O segredo para que a criança tenha sim duas casas mas não duas vidas chama-se equilíbrio. O equilíbrio que é mantido e promovido pelos pais, deixando que o filho seja do pai e seja da mãe, que desfrute do pai e desfrute da mãe, que seja feliz com um e seja feliz com outro, que seja castigado por um e seja castigado por outro, sem nunca, mas nunca, deixar de ser como é.

Os pais que são pais e que também são um casal passam, muitas vezes, ao lado de tamanha questão. A vida dos filhos é gerida debaixo de olho e os pais atuam como uma equipa coordenada – assim deveria ser. Contudo, isso nem sempre lhes mostra o quanto é importante destrinçar entre o filho ser nosso e o filho ser ele mesmo. Às vezes o problema é mesmo esse: os pais esquecerem que mais do que seus filhos os filhos são eles próprios, são pessoas à parte, não são extensões em ponto pequeno.

Se há aprendizagem que os pais separados têm obrigatoriamente de fazer é a de dividir o mais importante que têm na vida: o tempo que passam com os filhos.
Por outro lado, essa aprendizagem também não pode ser ignorada por todos os pais, em geral, em qualquer condição: saberem distinguir onde começa o “meu” filho e acaba o “ser alguém”, saber dar asas e ensinar a voar, saber o que se quer muito, para já e para sempre. Numa noção exata de que os filhos, sem deixarem de ser tão nossos, podem ser felizes sem nós vermos, desde que ao fim do dia, terminado o fim de semana ou feito o regresso a casa, partilhem essa felicidade connosco e tornem a vida deles, sem nós, aprendizagens dos dois.



in Lx4kids Novembro 2014

27 outubro 2014

Tiago

Mãe que é mãe diz e escreve coisas como esta. Mas eu sou a Mãe do Tiago e, por isso, este blogue há mais de 9 anos que lhe é inteiramente dedicado e as minhas palavras fluem, naturalmente, para ele.

O meu filho tem 9 anos mas tem muita história na vida dele. Eu tenho um orgulho imenso naquilo que ele é, mesmo quando ele me irrita, me enerva, me faz sentir desesperada, por ser teimoso e teimoso e tão teimoso, redobrar o mau feitio e desafiar-me até aos limites da paciência.
Por outro lado, num balanço que balança, o Tiago sabe conversar, dizer coisas refletidas, relatar-me aventuras dos recreios e da sala de aula, tem opiniões e decisões só dele e transforma-se, a cada dia, num ser humano único, feito da matéria que têm as pessoas especiais.

Na maior parte dos dias, eu não sei dizer ao Tiago, em palavras ou mesmo em gestos, o quanto gosto dele, o quanto sou dele, o quanto preciso dele.
Na maior parte dos dias, o Tiago também não sabe entender tudo isso.
O Tiago tem crescido muito e tem aprendido com as coisas que a vida dele, que é a nossa vida, o obrigam a reaprender.

Mesmo quando não estou à espera, o meu filho cresce muitos anos num instante, supera-se, faz-me sentir a pessoa mais abençoada por tê-lo na minha vida, por ela lhe pertencer.

Ontem o Tiago perguntou o que era um saquinho azul brilhante que vinha, ao seu lado, no banco do carro. Eu olhei para ele e disse-lhe que, há minutos, tinha recebido aquele presente e mostrei-lhe o anel no meu dedo. Ele sorriu muito e perguntou, com a resposta no olhar: “O que é que isso quer dizer?”. Respondi-lhe: “Quer dizer que a mãe vai casar...”. O Tiago abriu muito os olhos, franzindo a testa, e com um sorriso enorme, mas também um pouco envergonhado, deu-me um abraço. Agarrou-me o pescoço com força ali no carro, separados pelos bancos, apertados entre eles, presos naquele momento que nunca esquecerei.
Ali naquela reação tão dele, tão sincera, tão oportuna, o Tiago justificou tudo, como se o mundo finalmente girasse no sentido certo, lembrou-me porque é que o tenho na minha vida, porque é que ele é o melhor de mim, porque é que ele é realmente um filho especial. O meu filho.
Por ele tudo vale(u) a pena e toda a felicidade que soube cultivar na minha vida, que deixei germinar e que hoje me faz completa e serena, não é mérito meu. É mérito dos dois.




13 outubro 2014

Equilíbrio

Por um lado,
chovia torrencialmente quando o despertador tocou e o escuro que vi na janela sabia mesmo a segunda-feira. O carro estava estacionado no fim da rua, as mochilas pesadas e não havia mãos nem braços para chapéus de chuva, casacos e o filho arrastado para o carro, para a escola, para o começar da semana. O dia foi lento, cinzento, quebrado, calado. Havia trânsito no regresso a casa. Uma hora e meia de um caminho de vinte minutos.

Por outro lado,
acabei de tirar um bolo quentinho, redondo e doce do forno. A casa cheira a lar, está cheia e tranquila. Partilham-se segredos ao ouvido. O Tiago no sofá pede-me para ler um livro novo. Voltam as mantas para os joelhos, as pantufas nos pés e desdobram-se os abraços antes de adormecer.

29 setembro 2014

O Tiago com 9 anos, 1 mês e 13 dias
em 9 pontos:

1. Disse há uns dias que roubar é ser como o Ricardo Salgado.
2. O auge da sua semana é quando o deixo levar dinheiro e ir almoçar ao bar.
3. Fala no chat do facebook com amigos e amigas da escola, escondendo o ecrã para que eu não leia a conversa.
4. Tem um coração recortado e pintado de vermelho guardado na bolsa exterior da mochila da escola.
5. Tudo na vida dele começa e acaba no futebol.
6. Toma banho sozinho, encostando a porta e repetindo muitas vezes que não precisa de ajuda para nada.
7. Levou um casaco novo para a escola – um simples casaco tipo fato-de-treino, vermelho e branco com molas – e a primeira coisa que me disse ao final do dia foi: “Mãe, este casaco fez mega-sucesso. Quero trazê-lo todos os dias.” E assim tem sido.
8. Pediu-me uma mesada.
9. Sabe que escrevo coisas sobre ele e diz que detesta. Mas adora.

21 setembro 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #6


E agora o que é que eu faço? 

Liga tv. Muda de canal. Põe mais alto. Muda de canal. Liga o computador. Muda de canal. Liga a consola. Tecla no computador. Volta para a consola. Muda de canal. Põe a tv mais alto. “Mãe vamos jogar Monopólio!”. Espreita o computador. Volta para a consola. Muda de canal.

São as idas e vindas entre os entretenimentos modernos que compõem o cenário cá de casa, nos dias que restam, dentro das férias de verão do Tiago. Quando não dá nada na tv, quando já não há mais nada para procurar na internet, quando já está farto de jogar consola, quando não há ninguém para jogar Monopólio, o Tiago diz desesperado: “E agora o que é que eu faço?”. Esta pergunta junta umas pitadas de tédio a uma boa dose de falta de objetivos. “Vai jogar consola ou vê um filme ou lê um livro ou vai brincar com os Playmobil...” respondo-lhe eu numa ladainha repetida, contando baixinho quantos dias faltam mesmo para começar a escola.

A pergunta não é exclusiva do Tiago, já a ouvi vinda de outras vozes mantendo-se o tom de desespero. A resposta que verdadeiramente me apetece dar é: “Não faças nada!”. Quantos de nós daríamos tudo por um bocadinho de não fazer absolutamente nada?! Uns minutos que fossem dentro de uma semana inteira! Será assim tão complicado estar, apenas e somente, sem fazer nada?
Por outro lado, também já pressenti na pergunta “E agora o que é que eu faço?” uma colherada de responsabilização. Ou melhor, de desresponsabilização. Pensei para mim que, no fundo, o Tiago estava a responsabilizar-me pelo facto de ele estar de férias e não ter nada com que se entreter. Como se me encostasse à parede e avisa-se: “É bom que arranjes imediatamente algo divertido e estimulante para eu ocupar o tempo que tenho.”

Absorvidos e enleados no tempo do imediato, os nossos filhos valem-se pouco de si próprios. Dependem demasiado de nós para tudo: para brincar, para estudar, para escolher, para fazer. Contam connosco ou com um comando e uns quantos botões até para ocuparem o tempo que têm. Para nós, os pais, as férias são dias contados e subtraídos aos escassos 22 que nos dão anualmente. São tempos sonhados e perspetivados, sugados e explorados, como se a nossa sobrevivência dependesse disso. E depende. Quase tanto como os nossos filhos dependem de nós para saberem como ocupar o tempo das férias deles. Três meses inteiros de tempo, possíveis de serem preenchidos com tanto e que acabam desvalorizados em episódios repetidos das séries do Disney ou em jogos de futebol da consola ganhos 10-0 no nível amador.

Enérgico e inquieto, o Tiago não sabe como podem ser maravilhosamente retemperadores uns cinco minutos de... nada. Um tempo de pausa. Como se limpássemos a cabeça, os olhos, os ouvidos ou até o paladar e recomeçássemos de novo. As férias para a gente crescida tem muito disso: o fechar de um ciclo, o recomeço, o renovar de forças ou de vontades. O tempo é já uma joia rara, para ser namorado e desfrutado. Mas, para eles, o tempo é coisa imensa que querem agarrar com as duas mãos, comandar, preencher, viver sofregamente. Faltem dois meses ou dois dias para as férias acabarem, o importante é fazerem alguma coisa com o tempo deles sem suspeitarem que um dia vão desejar, simplesmente, não fazer nada.



in Lx4kids Setembro 2014

23 julho 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #5



Dormir sem sono

Todas as noites a história repete-se: “Mais 5 minutos, Mãe!”, pede o meu filhote quando já está ultrapassada a hora certa de deitar. Inevitavelmente, recordo-me bem de ser da idade dele e em nada temer aquele momento. Dali para a frente, das 10 da noite para a manhã do dia seguinte, do sofá da sala frente à televisão, para o lusco-fusco do quarto, começava todo um outro mundo para mim, onde tudo, mas mesmo tudo, era possível.

Foi nessas noites que desenhei muitas das histórias que iria viver quando fosse grande, adulta, mulher, independente, profissional, senhora de mim, plena de possibilidades e potencialidades. Ir deitar significava entrar numa outra idade, mais lá para a frente, e decidir, eu mesma, tudo o que iria viver. Aconchegada na cama, de luzes apagadas, voltava cada noite ao ponto onde tinha deixado a história – a minha – no dia anterior, adormecendo sem dar conta, embalada pela magia que tem a imaginação. Aos 8, 9, 10 anos, acreditava que o percurso seria assim: uma linha reta, definida, certinha, um caminho escolhido, consentido, pensado e concretizado, sem grandes curvas, sem maiores desvios. Então, ouvir a minha Mãe anunciar a hora de ir para a cama era um ato instantâneo. Sem adiar, sem passos lentos no corredor, sem lamentos, eu deixava mais um dia de escola, mais um final de tarde de trabalhos de casa, mais um jantar em família, mais um serão perto da TV, para entrar num segredo só meu, onde mandava eu e a minha cabeça, onde crescia 10 anos em poucos segundos.

Noite após noite, o Tiago resiste à ida para a cama com todos os seus argumentos e contestações. Tentando convencer-me que não terá sono absolutamente nenhum na manhã seguinte, jurando até que se irá levantar à minha primeira chamada. Torcendo-lhe a vontade, lá lhe concedo os 5 minutos da praxe e vamos os dois até à sua cama para lermos um capítulo do livro do momento e, depois, nos abraçarmos e beijarmos como se um de nós partisse numa grande viagem. Deixando-o deitado, disposto a adormecer, rodeado de bonecos e com uma luz fraca acesa, saio do quarto sempre a pensar que devia falar-lhe da magia que ele pode descobrir naquele momento, enquanto adormece e não adormece, enquanto o sono não vem e a manhã ainda está longe. Chego mesmo a travar os meus passos e a ponderar voltar atrás, sentar-me na beira da sua cama e relatar-lhe como eu vivi aqueles momentos quando era da idade dele, como eu conseguia ser tão feliz e tão infinita com aquilo que as crianças mais detestam: ir para a cama.
Nunca o fiz. Ainda não o fiz.

Na verdade, no final das contas, quando chega a minha hora de deitar, quando sou eu que pouso na mesa de cabeceira o livro do momento, quando se apagam as luzes e o dia termina, eu faço o caminho inverso, retrocedo 15, 16, 17 anos na idade, procuro as histórias no teto escurecido do quarto, aconchego-me nelas e deixo-me embalar pelo melhor que tem a imaginação. Então, perto muito perto de adormecer, sei que o Tiago não precisa do truque das minhas noites de infância, talvez porque os dias que ele vive são muito melhores do que todos os que eu possa ter imaginado quando tinha a idade dele. Com certeza, porque tudo o que espera o Tiago enquanto está acordado o faz muito mais feliz do que qualquer história criada, empolada, inventada, moldada e, afinal, fechada num tempo impossível, vivida enquanto está deitado na cama sem conseguir dormir. E é assim que eu adormeço tranquila, que eu adormeço feliz, por saber que a vida que o meu filho vive é muito melhor do que qualquer uma que ele tenha guardada, bem trancada, na sua imaginação.

in Lx4kids Julho/Agosto 2014

16 julho 2014

Conversas com ele

Cenário rotineiro, sentados no sofá ao serão. Eu agarrada ao computador e o Tiago vidrado na Psvita. Ambos com um olho, de quando em vez, na Tv.

O Tiago pergunta diariamente:
- Mãe, porque é que tens de trabalhar em casa?

Eu respondo-lhe repetidamente:
- Porque o dinheirinho faz falta, para pagar o colégio, a casa, comida, férias, roupas, as coisas que gostas e que precisamos...

Na noite seguinte, a pergunta voltava.
A minha resposta também.

Há dias mudei a resposta:
- Para ser mais feliz, Tiago. Eu gosto muito dos trabalhos que faço em casa.

 Há vários dias que não me pergunta nada. Encosta-se simplesmente ao meu braço direito, deixando um espaço milimetricamente testado para eu conseguir teclar.

19 junho 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #4




Um gostar perfeito

O meu filho tem 8 anos e pergunta-me, muitas e muitas vezes, se gosto dele e de quem eu gosto mais. A necessidade que o Tiago tem em testar e hierarquizar sentimentos é proporcional à dificuldade que sinto em colocar-lhe em palavras o quanto o adoro, acima de tudo, acima de todos.

Sou surpreendida, diariamente, com as perguntas mais “assustadoras”, vindas do meu pequeno rapaz. Sentado no sofá, agarrado à consola ou inebriado pela televisão, o Tiago solta coisas como “Mãe, tu gostas de mim?” com a mesma facilidade com que, logo a seguir, me pede umas bolachinhas de chocolate antes do jantar. Para tamanha pergunta, já adotei vários tipos de resposta... A não-resposta: “Ó Tiago, então não sabes que gosto?!”. A resposta insossa: “Gosto. Claro que gosto.” A resposta aflita: “Gosto muito, filho. Olha, gosto muito de ti. Decora bem. Nunca esqueças, está bem?”. A resposta peganhenta, que vem com beijos e abraços exagerados: “Gosto tanto de ti filho. És tudo para mim. Anda cá. Deixa-me encher-te de beijinhos!”. A resposta humorística: “Não, não gosto. Não gosto nada.” A resposta inquisidora: “Porque perguntas? Não sentes que gosto de ti? Não gostas de mim, é?”, entre tantas hipóteses todas repetitivas, infrutíferas e demasiado banais para serem minhas, para serem para ele.
Eu, o Tiago, esta coisa do gostar, a pergunta insistente e a gaguez da resposta têm-me feito pensar na forma como nos damos aos outros, em particular aos filhos. A história dos pais trabalharem muito e não terem tempo para as crianças não encaixa na forma como vejo o relacionamento pais-filhos dos dias de hoje. Os pais, como nunca, se deram tanto à vida dos filhos como acontece agora. A agenda dos filhos acaba por se sobrepor aos afazeres dos pais e, especialmente os fins-de-semana, são determinados pelos jogos de futebol ou as apresentações de ballet dos mais novos, entre festas de aniversário dos colegas da escola e tardes de domingo com trabalhos de casa e revisões para os testes. São os pais que encaixam os seus compromissos nos da criançada e não o contrário. E até parece que o facto de corrermos entre a manhã de sábado e a noite de domingo, levando e trazendo os meninos, preparando as chuteiras e embrulhando prendas com laço e tudo, estudando as medidas de comprimento e os determinantes-artigo, provamos e comprovamos, aos nossos filhos e ao mundo, o quanto gostamos deles, o quanto fazemos tudo por eles, o quanto é impossível que, do nada, um filho nos pergunte: “Mãe, tu gostas de mim?”.
Então, naquele instante, as melhores respostas podem ser substituídas por uma tentativa absurda de justificar amor com factos. Ou noutras vezes, pode restar o silêncio e uma dor pequenina que se agiganta, feita das dúvidas que alimentamos. Na verdade, o problema deste tipo de perguntas que os filhos nos fazem é o medo que temos de estarmos aquém das expectativas. Não das deles! Das nossas. A expectativa que criamos de sermos perfeitos, de estarmos sempre presentes, disponíveis e sermos tudo isso com um sorriso igualmente perfeito. Mesmo que os dias no trabalho não sejam os melhores, que os problemas da rotina não sejam os mais leves, mesmo que o país e a crise e o futebol e a meteorologia não sejam do nosso agrado, exigimo-nos perfeitos, cheios de respostas luminosas para perguntas nubladas. As minhas respostas ao “Mãe, tu gostas de mim?”, por mais variadas e expressivas que sejam, nunca lhe chegam, nunca lhe sobram. Até eu perceber que, mais do que uma dúvida, a questão é afinal um pedido. No fundo, o Tiago não quer saber se eu gosto mesmo dele, ele quer sim que eu lhe diga que gosto, que gosto muito, que gosto sempre, e que lhe diga isso com um sorriso perfeito.


in Lx4Kids Junho 2014

14 junho 2014

Saber de mim?



"Honra tanto esmero, cala o desespero, 
É simples, tudo o que é da vida herdou sentido, 
Tem-te se for tido, sabe ser vivido, 
 Fala-te ao ouvido e nasces tu..."

30 abril 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #3




Só um minuto 

Apressados pelo relógio e pelas tarefas, vivemos a correr o tempo entre chegar do trabalho e voltar para ele, entre trazer a pequenada da escola e voltar a deixá-los lá pela manhã, numa espécie de maratona sem meta, numa lufa-lufa diária que não acaba, que não sossega.

“Espera só um minuto” respondemos à chegada a casa, enquanto o nosso filho nos relata o auge do intervalo do almoço e da brincadeira nova que ele e os amigos inventaram. Temos o telefone a tocar, uma consulta para desmarcar, roupa para separar entre branca e com cor, roupa para apanhar antes que volte a chover e, mais uma vez, nada a descongelar para o jantar!
“Espera só um minuto” respondemos enquanto o enfiamos no banho ou vestimos o pijama e ele explica detalhadamente a piada que um colega disse mesmo no meio da aula de Estudo do Meio. Nós encaixamos cuecas, meias e t-shirts nas gavetas e roupeiros pela casa e damos um salto à cozinha para desvirar a arca congeladora e descobrir algo rápido, prático, unânime e eficaz para jantarmos.
“Espera só um minuto” respondemos durante o jantar, enquanto o nosso filho conta um episódio que acabou de ver na tv, rindo em soluços entre as frases. Nós queremos só cortar o bife, juntar o arroz, mastigar devagar, beber um gole de água e, depois, levantar a mesa, encaixar a louça toda dentro da máquina, arrumar a cozinha e sentar no sofá.
“Espera só um minuto” respondemos entre tpc’s de língua portuguesa, matemática ou inglês, enquanto o nosso filho se multiplica em dúvidas e dificuldades, em perguntas que não entende mesmo e em resposta que não sabe onde estão. Nós só queremos ouvir uma qualquer notícia do telejornal até ao fim ou folhear uma revista ou simplesmente vegetar, no canto do sofá.
“Espera só um minuto” respondemos ao nosso filho que, orgulhosamente, nos quer mostrar a melhor jogada que fez no jogo da PSP. Nós queremos falar ao telefone com uma amiga, trocar dois dedos de conversa com o marido, pesquisar isto ou aquilo no Google ou pôr “likes” nas publicações dos amigos no Facebook.

“Ó Mãe, só mais um minuto” pede o nosso filho, docemente, quando avisamos que são mesmo horas de ir para a cama. Lá vai ele resignado, casa adentro, deitando-se, ouvindo a história que contamos, esticando-se nos abraços e beijinhos de boa-noite e aconchegando-se na almofada entre peluches e cobertores.
Antes de irmos dormir, voltamos para ver o nosso filho adormecido, tapamos-lhe melhor o corpo, ouvimos o seu respirar e, naquele instante, temos os minutos todos só para ele.

in Lx4Kids Maio 2014

14 abril 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #2



A crescerem ao Sol 


Foi então que chegaram os dias de sol. Vários seguidos, sem chuva, sem nuvens, sem frio sequer. Todos tiraram roupa, despiram casacos, trocaram calçado. Tantos saíram para a rua, encheram esplanadas e jardins, provaram gelados e pediram gelo na bebida.

As rotinas mudaram. Mudam sempre com os dias da semana e as estações do ano e, quando os finais de tarde guardam sol, mudam para melhor.

Sempre se disse que as crianças, como as árvores, crescem mais na primavera. Desabrocham. Descobrem-se. Ganham cor e amadurecem. As mais pequenas dão primeiros passos e outras deixam de usar fralda. Os maiores desdobram-se em perguntas e questões, dúvidas e considerações próprias. Nós, encantados com a temperatura e inebriados com a luz, acompanhamos-lhes o crescimento e as ideias que trazem, desvendamos-lhes mistérios e, por vezes, queremos travá-los. Deixá-los exatamente como estão. Sentir-lhes mais um pouco o corpo pequeno enrolado no nosso. Os abraços doces enleados nos nossos. Os beijos suaves lambuzados nos nossos. Vê-los pequenos, feitos de inocência e simplicidade, de verdade e ilusão. Somente isso. Serem os nossos filhos, antes de nós sermos apenas os seus pais. Manterem-se, só mais um pouco, os meninos das mamãs e dos papás, dos avós e das professoras, que ainda os abraçam à chegada e limpam o nariz quando têm ranho.

A primavera faz-lhes crescer os pés e os braços, tornando os ténis apertados e transformando camisolas de manga comprida em t-shirts. Dizem mais coisas, aprendem mais palavras, reparam nas pessoas que passam e nos prédios que crescem. Falam do que viram e ouviram, pensam coisas deles e defendem ideias que criam. Olham mais longe e reparam melhor.
O bem que o Sol faz aos nossos filhos é proporcional ao medo que temos por os perdermos, por serem cada vez mais eles próprios e menos nossos. Por eles crescerem tanto e pertencerem- nos menos, tornarem-se autónomos e donos das vontades que trazem.

Então, sabemos lá no fundo, olhando-os de soslaio entretidos nas coisas que são só deles, que chegará o verão e voltará o inverno e que os nossos filhos crescem, mudam, sem culpas nem desculpas da primavera ou do Sol. Crescem na medida precisa do que crescemos nós também, quando tínhamos a idade deles e nem imaginávamos o quanto os nosso pais nos queriam ter pequenos, sentir- nos parte deles, fechados no colo, enleados no abraço, lambuzados de beijos. Até hoje.

in Lx4KIDS Abril 2014

02 abril 2014

Há 3 coisas...

...no meu filho perfeitamente adultas:

1.quando quer alguma coisa diz "eu"
2.quando a conversa inclui estudar, tpc's e outras obrigações diz "nós"
3.quando algo corre mal diz "eles"

31 março 2014

Não sei mesmo



O meu filho diz que eu respondo muitas vezes “não sei”. O meu “não sei” vale para problemas de matemática com casas decimais e frações, datas de nascimento de jogadores de futebol e para perguntas feitas de madrugada como “Mãe, como é que eu venço os meus medos?”.

O “não sei” muito mais do que uma resposta é uma não-resposta, é um “que pergunta essa agora!” ou um sussurrar comigo de “e agora que digo eu?”.
Quando o “não sei” é, efetivamente, “n-ã-o-s-e-i” não vale nada, não significa nada, não se ouve sequer. Porque a Mãe tem de saber tudo: a que horas chegamos, a que horas vamos, quem ganha a quem, em que canto da baliza entrou a bola, o que vai ser o jantar e o almoço da semana que vem, quando vai a chuva e vem o sol, quanto é 8x7 e o que fez Diogo Cão em 1482.

“Não sei” não é resposta, tal e qual como “porque sim” e “porque não”, “porque tem de ser” e “porque não dá”.

A primeira vez que o Tiago me disse “estás sempre a responder não sei” guardei o assunto para depois. Fiz-me polícia das minhas próprias palavras e, a cada “não sei”, questionava-me: seria um “não sei” verdadeiro ou falso?
A pressa com que, tantas vezes, enchemos os finais de dias tornam as respostas vazias.
Então, decidi pensar sempre mais um pouco antes de responder... “não sei”, assegurando-me que não sei mesmo.
Assim, fizemos trabalhos de casa de matemática e descobri que “não sei mesmo” o que raio são os “gráficos caule folha”.
Treinámos si-lá-sol na flauta para o teste de música e confirmei que “não sei mesmo” porque razão, estando os dedinhos do Tiago a taparem os buraquinhos certos, o sol sai desafinado.
Lemos alto uma composição em inglês para ele apresentar na aula e atestei que não sei mesmo dizer algumas palavras com a pronúncia perfeita, tais como “also” ou “tomato”.
Vimos o jogo do Benfica e jurei que “não sei mesmo” em que clubes jogou o Funes Mori antes de ali chegar.
Analisámos juntos uma borbulha que o Tiago tem na perna e repeti-lhe que “não sei mesmo” como apareceu ela por ali e porque o chateia tanto.
Lemos juntos antes de dormir e, no final do capítulo, expliquei-lhe que não sabia como acabava o livro porque nunca o li antes.

Naquela noite, o Tiago não conseguia adormecer. Chamou-me dezenas de vezes. Ouvia barulhos nas escadas, nas paredes, na rua, dentro da cabeça. Levantava-se e deitava-se. Foi fazer vários chichis e pediu água. Despiu as meias e pediu outras. Tirou um edredão e pediu mais um cobertor. Apagou e ligou luzes sem parar.
Adormeci e acordei umas quantas vezes mantendo-se ele de olhos abertos, saltitando da cama dele para a minha com perguntas, dúvidas e medos.
Lá pela uma da manhã voltei a despertar de um sono fraquinho com a voz dele, encostado à minha cara, dizendo: “Mãe, como é que eu faço para ultrapassar os meus medos?”.
Cansada, irritada, desfalecida... respondi “não sei”.

Em frente aos olhos turvados pelo sono, vi gráficos de caule e folhas cheios de dezenas e unidades, vi notas musicais desafinadas por flautas mágicas, ouvi palavras em inglês na mais brilhante das pronúncias, enchi-me de borbulhas pequeninas e adivinhei o final da história do Capitão Cuecas.
E chorei.
Não de sono, nem de irritação, nem de cansaço.
Chorei por não saber como se vencem medos. Do escuro, dos ladrões, dos barulhos ou dos pesadelos. Chorei por tudo o que não sei. Pelos medos do Tiago espelhados nos meus. Pelo tempo que se perde. Pela angústia que se prende. Pelas perguntas que se calam. Pelas certezas que se perdem.
Chorei por não saber tanto, por não saber nada.
Chorei porque não sei. Não sei mesmo.



Ilustração

10 março 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #1

Nota prévia
Inicio neste mês de março uma crónica mensal na novíssima revista Lx4KIDS, de distribuição gratuita, feita a pensar nas crianças e nos pais que ainda não descobriram a verdadeira magia de Lisboa. Aqui irei partilhar, mensalmente, as minhas crónicas que preenchem a página de fecho da revista.


Dias cheios de tempo

Uma das melhores coisas de ser criança é o modo como olhamos e sentimos o tempo. A par da despreocupação, a ilusão que a vida é infinita e que o tempo tem o dobro do valor, são memórias de ontem, quando crescemos, e de que sentimos tantas saudades.

Para uma criança, um dia está cheio de horas imensas. Em cada minuto cabe um sonho. Em cada hora cabe um ano. Em cada ano cabe o mundo. O mundo que consegue equilibrar na palma da mão!
É tudo gigante mas perfeitamente alcançável quando forem grandes, quando crescerem...
Para nós, os pais, as horas são contas certas. Entre a hora do toque de entrada e o toque de saída, encaixamos o trabalho e as burocracias, os afazeres domésticos e um ou outro projeto pessoal, numa luta de calendários e horários que nem sempre dá “resto zero”.

Então, o que fazer? Como fazer? Como gerimos o nosso horário e o horário dos mais pequenos num equilíbrio saudável, num encontro de interesses e benefícios, de razões e soluções? Arranjamos-lhes afazeres. Atividades de tempos livres, salas de estudo, desportos mil, lições de música, explicações de uma ou outra disciplina mais periclitante. Objetivos e interesses que, em muitos casos, refletem gostos e tendências dos pais, sonhos de infância que não viveram, talentos que não concretizaram, dons que deixaram por explorar. Então, a voz límpida da mãe ouve-se da garganta da filha e os toques mágicos do pai com a bola são chutados para o pé do filho.

Nesta coisa do tempo o mais importante é ocupá-lo e libertá-lo. Fazer dele o melhor que ele tem para dar a cada um. Refletindo interesses e vontades próprias. Para que as crianças vivam dias cheios de si próprias. Para que entre as aulas e as matérias extensas, entre o toque de entrada e o momento do regresso a casa, os nossos filhos sejam exatamente o que são e como são. Sem serem nunca uma extensão de nós, sem terem de usar o melhor do tempo deles a viver sonhos dos pais.

Depois, há que oferecer-lhes tempo. Abrir espaços que os deixe pensar, simplesmente estarem, serem pequenos e sentirem o tempo infinito e vago. Para que tudo o que vivem, dentro dos seus dias cheios, germine, floresça, faça sentido, lhes abra o olhar e multiplique o pensamento. Para que dentro de cada dia possam ser, apenas, crianças e verem o mundo a girar na palma da mão, tão pequeno perante o tamanho do tempo por viver.

in Lx4KIDS Março 2014

26 fevereiro 2014

De mim comigo

Ouço sempre com algumas reticências aqueles desabafos comuns de pessoas que estão permanentemente a ser desapontadas por outras, que tinham como amigas ou como amores ou cujos laços familiares as faziam parte conjunta. São comuns considerações como “as pessoas que mais gostamos são as que mais nos dececionam” ou “mais uma vez descubro o que as pessoas são de verdade”, numa tentativa de comiseração que, logo à partida, recuso.

Eu sei que a teoria da idade - “Vive mais anos e vais ver”, já ouço algumas vozes profetizar – até pode ter peso nestas coisas das relações humanas, mas eu – Felizarda! Felizarda! - não guardo desilusões.
Ou já as esqueci, e daí se vê a importância que tais pessoas possam ter tido na minha vida, ou então protegi-me a tempo. E é por aqui que quero ir.

Há muitos anos que ouço sobre mim que não sou de dar muita confiança, à partida, que não sou expansiva nem de simpatia imediata. Gosto disso.
Acho que tenho faro para pessoas que são de desconfiar. Quando dou por mim já cortei, já retirei confianças, já dei três passos atrás e empunhei o escudo. Desconfio muito mais do que confio e, talvez por isso, é que as pessoas me surpreendem muito mais pela positiva... do que o contrário.

Tenho uma mão cheia de histórias recentes, que metem trabalhos e partilhas, que provam isto mesmo. De pessoas que tenho como minhas mas com quem não falo todos os dias, nem todos os meses... nem todos os anos, sequer. Mas que, numa oportunidade, é de mim que se lembram e pegam no telefone ou carregam nas teclas do e-mail para me fazer parte de algo, para me recomendar para alguma coisa, para dividir comigo algo bom que conseguiram e que também me pode beneficiar.

É então que sinto o poder da gratidão e, por mais que tente expressá-la, tudo me soa fraco e levezinho. Por vezes, queria ter “néons” no céu que piscassem para alguém dizendo “Obrigada! Obrigada!”. Ou então queria recompensar cada um com o tamanho daquilo que me deu.

Sou muito abençoada pelas pessoas a quem chamo amigas. Tenho muitos amigos e amigas, pessoas de quem gosto mesmo, de quem gosto mesmo muito, a quem dou abraços apertados quando nos vemos, de quem sinto saudades sem fim quando não estamos perto.
Pessoas para quem desejo tal e qual o que desejo para mim própria.
Pessoas a quem escrevo do nada e digo “gosto de ti”, pessoas que me mandam mensagens só para saber se estou bem. Nunca hei-de esquecer um telefonema madrugador de uma amiga, que vive a mais de 200 quilómetros, e com quem falo quatro ou cinco vezes por ano, perguntando-me apenas se estava bem porque tinha sonhado comigo e ficou preocupada.
Nunca hei-de esquecer as vezes que alguns amigos deixaram de fazer as suas coisas para me ajudar nas minhas. Nunca hei-de esquecer abraços que recebi em momentos certos... ou incertos.
E, por estes dias, nunca terei “obrigadas” suficientes a quem me ajudou a ter os dias cheios de trabalho, de projetos e de uma compensação incomparável que vai muito para além do dinheiro.

Então, as minhas amizades, são feitas de boas surpresas e de inesperados positivos. Dizendo eu, de mim comigo: “Olha que bom! Não estava nada à espera!” e o nada ser um tudo tão acertado no momento presente.

Que chegue a idade e que se desvendem as relações humanas, que permaneçam as desilusões alheias com as pessoas que escolheram, que eu quero as minhas pessoas tal e qual como são, como eu as fiz para mim: quando desconfio uma vez, não confio mais; e quando confio... desconfio um pouquinho para depois confiar sempre. Sempre mais.

17 fevereiro 2014

Se a felicidade existe, a felicidade é isto... #1

… chegar a casa.




Ser dia de semana e escurecer às 6 e meia e estarmos no momento em que chego a casa. É outono ou inverno, como agora. Antes a paragem na escola do Tiago, procurá-lo no recreio escurecido, encontrá-lo pela voz, pela silhueta , por um andar desajeitado que é só dele. No carro, de faróis acesos, paramos no semáforo avermelhado. Olho-o no banco de trás, pergunto sobre o dia que teve, sobre a sala de estudo ou o treino de futebol. As respostas vagas que dá terminam quando me lembra que já está verde e tenho de avançar.
Pergunta coisas do meu dia, do qual invento respostas fantasiadas para não lhe coartar sonhos de ser, um dia, feliz com o que vier a fazer.

E chove.
Chove só um pouco. Para molhar o vidro do carro, para nos fazer correr entre o carro estacionado e a porta de casa, para nos fazer tapar a cabeça com a mochila da escola ou a lancheira do almoço. É o final do dia e estamos em casa. Hoje somos dois. 

Ele procura a bola debaixo do sofá para os seus jogos “proibido-consentidos” na sala de estar. Pede bolachas, água fria, atira com os ténis para o canto do corredor e pergunta se vou acender a lareira.
Digo-lhe que quando tinha a idade dele adorava chegar a casa, vinda da escola, em finais de tarde como aquele, e ter a lareira acesa. Ele não dá importância à história repetida e pega na vassoura para retirar a bola debaixo do sofá.

Penso no jantar, enquanto acendo a lareira. Penso em coisas para fazer, enquanto visto o pijama. Penso nos trabalhos de casa do Tiago, enquanto despejo a máquina da louça. Penso no livro novo que vou ler ao deitar, enquanto jantamos os dois, na mesa pequenina, frente à lareira bem acesa, colados às notícias do dia ou a um episódio repetido da “Violeta”.

De mochila aberta, o Tiago retira livros e folhas amassadas por estojos e cadernos. Mostra-me fichas meias-feitas, rasuradas, com coisas certas e outras quase-pintadas. Lista, apressado, tudo o que “temos” de fazer, reforçando o “temos” com convicção.
Escolhe a ordem dos trabalhos e agarra-me o braço para que trabalhemos em equipa, vencendo a minha frase-feita do “Mas eu não ando na escola, Tiago!”.

Está escuro e o dia a fechar. Embrulhamo-nos no sofá a ver concursos e novelas, quartos de hora de publicidade e pedaços de zapping. Dividimos a manta e as almofadas, ele espreita o que faço no computador, eu espreito mais um grande golo na Psvita.

É hora de ele deitar, de lermos juntos os livros que escolhemos, de o tapar até às orelhas e o encher de beijos, pensando inevitavelmente: “Amanhã tenho de ser mais paciente com ele...”

“Dorme bem, filho. Num instante é de manhã...”
O dia termina ali. Vive-se ali, entre chegar a casa e vê-lo adormecer. Tudo o que fica antes e depois disso é quase nada, é quase incerto.





Ilustração

10 fevereiro 2014

Conversas com ele

I
Deitados na cama, a tentar adormecer, digo enquanto o abraço com muita força:
- Tiaguinho! A mãe adora-te! Adora-te! Adora-te! Adora-te! Não me canso de te dizer.
- Mas acredita que eu canso-me de ouvir...

II
No carro, na auto-estrada de regresso a Lisboa, num dia de alerta vermelho:
- Mãe, disseste que íamos devagar por causa do tempo e vais a 120?! Isso é que é ir devagar?!
- Ó Tiago tenho de aproveitar quando o tempo melhora senão nunca mais lá chegamos...
- Mãe, eu quero é chegar vivo, não é chegar depressa.

30 janeiro 2014

Não é Sim.



Há uns dias fui ao cabeleireiro de sempre para algo tão rotineiro como cortar um ou dois dedos no comprimento do cabelo, lavar e secar. Naquele final de tarde, não estava particularmente conversadora, imbuída num espírito autómato a que costumo chamar “inércia”. Assim, cumpri todo o ritual em serviços mínimos, respondendo com “sins” e “pois” às perguntas da rececionista do salão, dizendo “sim” ou “não” ao “Champô normal? Amaciador? Máscara?” da menina que lava o cabelo, escolhendo apenas entre “vermelho ou cor-de-rosa” à simpatia palavrosa da manicure. Aquele som de fundo dos cabeleireiros, cheio de secadores, conversas paralelas em segundas e terceiras camadas, gente que passa de um lado para o outro, levam-me sempre para uma realidade alternativa, que me protege do caos numa espécie de cápsula isolada.
Na cadeira, frente ao espelho, o cabeleireiro quis aumentar o dedo ou dois de comprimento para dois ou três, naquela paixão pela tesoura que tanto caracteriza tal profissão. Insisti. Era apenas um ou dois, não três. Ele sorriu e pôs mãos à obra, acabando por conseguir “escadear” na parte de trás, em vez de cortar a direito.
Terminado o corte, perguntou: “Como vamos secar?”. Eu respondi de imediato: “É para esticar.” Com o secador ligado bem perto dos meus ouvidos e o cabelo a esvoaçar, o cabeleireiro lá me apresentou uma sugestão alternativa, dizendo que o que ficava mesmo bem era encaracolar nas pontas. Acho que ainda disse que não, que expliquei que o meu cabelo não aguenta caracóis por mais de umas escassas horas, que não valia a pena, que já era final do dia e que ia já para casa, que daqui a poucas horas ia dormir e de manhã já não haveria vestígios sequer de um caracol que fosse. Acho que disse tudo isto em frases soltas, enquanto o meu cabelo continuava a esvoaçar e o secador zumbia pertinho dos meus ouvidos. Ou então não disse nada, só pensei.
Certeza tenho que saí do cabeleireiro cheia de caracóis nas pontas do cabelo, que saltitavam felizes nas minhas costas, enquanto entrava e saía de uma ou outra loja.

Naquele final de dia, naquelas voltas, no regresso a casa, no tempo entre o jantar e o serão, os afazeres e a hora de deitar, só uma questão não me largou: “que problema terei eu com o dizer não?”.
Os meus “nãos” são mais “talvez” “quases” ou mesmo “sins”. Os meus “nãos” não se ouvem como o resto, roçam a dúvida, atingem a concordância.

Na manhã seguinte não havia vestígios de caracóis no meu cabelo, nem sequer marca alguma de eu ter efetivamente ido ao cabeleireiro no dia anterior. Contudo a questão do saber dizer “não” ficou bem encaracolada no meu pensamento, até hoje.

Ouço há muitos anos que não sei dizer “não” ao Tiago e já fui muitas vezes apanhada por ele próprio, com comentários como: “Posso, Mãe? Mas tinhas dito que não?!”, num misto de incrédulo e duvidoso. Os meus “nãos” para ele acabam em vários “sins” vencida pelo cansaço face à teimosia, vencida pela resposta fácil face à insegurança.
Os “nãos” que digo como mãe não são muito diferentes dos que tento dizer como profissional, sempre a aceitar todos os prazos de várias solicitações diferentes para entregas sucessivas, sempre a achar que arranjo mais uma meia hora aqui e dez minutos acolá e consigo fazer tudo.
São semelhantes ainda aos “nãos” que digo como amiga, encaixando lanches e reuniões, jantarzinhos e curtos encontros tudo dentro de uma mesma quinta-feira em que o filhote não está comigo. Achando mesmo que, depois disso, ainda dou um salto ao cabeleireiro para esticar o cabelo antes de ir para casa.

Todos os “nãos” tímidos que saem da minha boca chegam ao outro lado como bonitos, sonoros e firmes “sins”. Mesmo de secador desligado e cabelo sem esvoaçar, os meus “nãos” são, definitivamente, “sins” desprovidos de convicção.

Ilustração

23 janeiro 2014

Olha

As melhores coisas chegam devagar,
saboreiam-se em pedaços,
prolongam-se nos dias até ficarem
para sempre.
Sofre-se por elas
numa forma rebuscada do Universo de nos mostrar 
o que realmente importa.
O que é para ser nosso,
será.

Mas entretanto,
convém mostrar que o queremos,
que o queremos com força,
que o merecemos nosso,
infinito,
inteiro,
completo.
Parte da vida ou uma vida com aquela parte melhor.

09 janeiro 2014

20 coisas que eu quero que o meu filho
saiba até ao Natal até ao final do ano sempre

#20

Usando a mais simples das metáforas: nem todos os dias são de sol. Mas, recorrendo ainda a uma frase batida, como apreciaríamos os dias de sol se não existissem dias de chuva?

O Tiago culpa sempre o próximo por aquilo que faz de menos certo e lhe custa assumir. Tem 8 anos! O imediatismo do dedo apontado ao do lado seduz qualquer um quando nos sentimos apertados, entre a espada e a parede, entre o medo e a vergonha. Esse plano de fuga toma, então, dimensões gigantes numa criança de 8 anos, resistente às desculpas mas perita em argumentos. Assim, é um cenário da rotina o Tiago apontar-me a mim como culpada dos mais diferentes azares ou contratempos que lhe acontecem a ele, só a ele, fruto do acaso ou de um ato seu, mal calculado.
Quando lhe ouço “a culpa é tua”, dirigido a mim, mesmo quando eu nem ocupava o mesmo espaço físico dele, lembro-me sempre de nós. Nós os adultos, os pais, os maiores, os profissionais, os grandes.

Vivo muito perto de culpas alheias no meu dia-a-dia, para além das que o meu filho me atribui. Vejo episódios desses frequentemente, nos mais distintos contextos, entre gente crescida, supostamente responsável. Assim, e talvez por isso, desculpabilize tanto a culpa que o Tiago vê em mim quando, por exemplo, deixa cair o pacote das bolachas no tapete ou perde um jogo na Xbox. Coloco tal reação ao mesmo nível do ridículo e desvalorizo, depois de lhe tentar ver que foi ele quem tocou no pacote e o fez cair ou que eu nem sei jogar aquele jogo. Ele ainda dirá coisas rebuscadas como eu ter passado e feito vento e daí o pacote ter caído ou, no segundo episódio, eu ter passado frente à televisão e ele assim não ter visto a bola e ter falhado a jogada.

Por outro lado, o poder que os atos dos outros têm no curso dos nossos dias é, muitas vezes, exageradamente empolado. Não só quando eles estão suficientemente próximos para ficarem com culpas nossas. Mas, especialmente, quando permanecem ali, à mão de semear, para justificar o que não somos capazes de conseguir sozinhos. Somos imensamente dependentes dos outros. Vemos tudo o que é nosso à medida do que pertence aos outros. A felicidade que temos ou não. Os bens materiais que temos ou que nos faltam. Os objetivos de vida que alcançamos ou falhamos. Os talentos que somos ou que almejamos.

Eu, que não sou muito de olhar para o lado, que não sobrevivo de comparações ou medições, tenho cada vez mais dificuldade em aceitar que a vida de cada um seja conduzida pela vida do outro do lado. Que os objetivos, as carências, as missões e as vivências de um se transformem em tudo isso porque copiadas de outrem. Que a fonte do que se deseja esteja no que outros querem para si.
Eu, que olho demais para dentro, acho que as culpas, as desculpas, os dias cinzentos, os percalços, começam e acabam em nós, agentes da nossa própria vida, donos e senhores do que desejamos. Só assim podemos, depois, reclamar o que conseguimos como nosso, justificar o alcançado como mérito próprio.
Temos de aprender a ficar com as culpas para, depois, merecermos as bênçãos.

Então, nos dias escuros, impossíveis de contornar, e nos pequenos contratempos, eu quero muito que o Tiago saiba assumir a culpa que tem. Para depois, tudo o que gosta e não gosta venha da cabeça dele e para que tudo o que alcance lhe pertença, por inteiro. Para que ele esteja preparado, no bem e no mal, a depender de si próprio, porque...




05 janeiro 2014

A guardar



"It's that thing when you're with someone, and you love them and they know it, and they love you and you know it... but it's a party... and you're both talking to other people, and you're laughing and shining... and you look across the room and catch each other's eyes... but - but not because you're possessive, or it's precisely sexual... but because... that is your person in this life. And it's funny and sad, but only because this life will end, and it's this secret world that exists right there in public, unnoticed, that no one else knows about. It's sort of like how they say that other dimensions exist all around us, but we don't have the ability to perceive them. That's - That's what I want out of a relationship. Or just life, I guess."

in Frances Ha

Puramente real. Um drama crú vestido de comédia.

02 janeiro 2014

De mim comigo

Gosto de rotinas. Quase tanto como gosto do inverno e de chuva, de estar um fim de semana inteiro sem sair de casa e arrumar gavetas e armários. Ou seja, de coisas que geralmente ninguém gosta.
Gosto de comida sem sal e de bolos com pouco açúcar. Gosto que o azul das calças seja igualzinho ao azul da camisola e das botas, do cachecol e da mala, da bracelete do relógio e das meias que nem se vêem.
Quando gosto de um livro leio todos do mesmo autor e quando uma música soa bem procuro todos os álbuns da mesma pessoa. Gosto do mesmo chocolate desde sempre e da mesma bebida desde o primeiro trago. E, no meio de tanta concordância, se há coisa que eu gosto mesmo é de não dar nada por garantido. A supremacia da instabilidade a dominar uma vida tão estável. É disso que eu gosto.