28 março 2011

Foi então

que ele me viu a chegar à escola, com o guarda-chuva aberto, espreitando na porta da sala procurando-o entre as crianças. E sorriu. Sorriu muito enquanto corria a buscar o saco, o casaco, os papéis dos recados meio dobrados e disse
"Mãe"
prolongando a sílaba e agarrando-me as pernas.

Correndo para o carro, eu e ele, muito abraçados, trocámos beijos e repetimos saudades. E debaixo da chuva, debaixo do chapéu, tornámo-nos as pessoas mais felizes do mundo.

27 março 2011

21 março 2011

Coisas que acontecem na vida








Naquele fim de tarde o casaco que tinha ido para a escola não voltou e o Tigy, abrigado com um qualquer dos perdidos e achados, disse no seu tom pesaroso: "Perdi o casaco, Mãe". Num chorrilho de frases-feitas, ataquei o filhote com coisas como "Já é o segundo casaco que perdes este ano", "Ainda comprámos o casaco há tão pouco tempo", "Tens de tomar conta das tuas coisas", "Onde puseste o casaco quando o perdeste", até ser interrompida pelo Tigy que no seu tom afirmativo diz: "Mãe, é a vida", carregando no i e estendendo a última sílaba de todas.
Segurando a imediata vontade de rir, tentei mais um ou outro comentário em forma de reprimenda como "Acho bem que ainda encontres o casaco" ou "Qualquer dia deixo de te comprar casacos e andas ao frio"... mas ele fechou o assunto completando: "Mãe, são coisas que acontecem na vida".

As coisas que acontecem na minha vida também já foram casacos perdidos na escola e raspanetes da Mãe por causa das nódoas na bata. Também já foram brinquedos partidos e a sala desarrumada. Também já foram o jantar espalhado no prato sem ser comido e as horas a mais a ver televisão. As coisas que acontecem na minha vida também já foram testes com notas abaixo da média e trabalhos de casa feitos à última da hora. Mas também já foram os instantes enquanto se procura o nome numa pauta de exames afixada na parede ou se entra numa sala hostil para uma entrevista de emprego.

Há uma espécie de balança que trazemos na mente que vai adaptando o peso dos pratos à medida que as coisas que acontecem na vida vão mudando. Perder um casaco passa a pesar menos quando se tira a primeira negativa num teste e a nota menos boa perde valor quando se chumba mesmo a uma disciplina, assim como tudo isso fica desprovido de qualquer interesse quando não se é escolhido para uma vaga de emprego o que, por sua vez, acaba por não ser nada quando falta trabalho ou falha alguém. Com a idade, com o tempo, há coisas da vida que perdem peso para que outras apareçam e se agigantem.
Alguns problemas deixam de ser problemas quando surgem outros maiores e esta lei de compensações e proporções persegue-nos, ou guia-nos, mesmo que nem nos apercebamos dela.

As coisas que acontecem na minha vida agora nunca teriam o sabor que têm se eu não tivesse experimentado todas as outras que aconteceram antes. As coisas que eu tenho agora a acontecer na minha vida são o resultado desses sucessivos equilíbrios dos pratos da minha balança.

Então, olhar para trás é descobrir que afinal nunca há melhor do que o presente, nunca há melhor do que as coisas que acontecem agora na nossa vida, por muito que sejam casacos perdidos e reencontrados na escola ou dias de calor depois de semanas de chuva.

O que fica do passado é o eterno jogo da comparação de problemas, da importância que eles têm num momento e de como a perdem totalmente um instante depois. Sim Tigy, tu é que tens razão. No final das contas, são apenas coisas da vida. Coisas que acontecem na vida.

Ilustração - Monica Armino

15 março 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #12

A pergunta:
Mãe,
porque é que existe o trabalho?

A resposta imediata:
Então, para ganharmos dinheiro para comprarmos coisas...

A interrupção, a choramingar:
Já sei que me vais comprar roupa...

11 março 2011

Olha

quando começar a chover
e as nuvens muito negras que vias por cima da tua casa
explodirem no céu como bombas de água,
não feches portas e janelas,
não escondas os olhos nem curves as costas,
não mudes os planos ou alteres os horários,
não troques de roupa nem os sapatos.
Simplesmente,
deixa chover.

05 março 2011

Saber de mim?

Conheci uma mulher de armas


e as armas muito próprias de outra mulher


Vi o lado cor-de-rosa da sumptuosidade



e o lado mais negro da miséria



Ando perdida e enleada nas 1030 páginas deste livro




e reencontrada para além do "como nunca" e do "como sempre".

02 março 2011

"Por falar se ganha, por falar se perde"

Correu a atravessar a estrada, desprezando a passadeira e o sinal vermelho para peões. Havia uma ou outra prioridade a cumprir, acima das regras de trânsito ou das normas do bom senso. Nos ouvidos, para lá de uma buzinadela aflita e de um grito de criança com birra, Eva trazia duas ou três frases ditas há minutos, escutadas sem querer ou memorizadas sem esforço. A verdade surgia-lhe sempre assim: em acasos sem acaso, em segundos escassos de gente apanhada desprevenida.
Depois, não havia regresso ao minuto anterior ou à memória passada, não havia botão que apagasse partes do cérebro ou recuasse o filme, não havia volta que se desse que a levasse para trás e a deixasse andar para a frente. Então, era preciso agir. E, voltando a mudar de rumo sem obedecer ao trânsito ou ao destino, Eva pensou.

Ou

Entrando pela porta da frente, subindo as escadas em lanços de dois e agarrando o corrimão entre o polegar e o indicador, admitiria que trazia a memória mais pesada e a língua salgada com aquilo que, a partir dali, saberia para sempre. Colocaria hipóteses em catadupa: teria ouvido bem? Seria essa afinal a verdadeira história? Tinha valido a pena calar-se quando lhe pediram segredo e arrancar a pele das feridas antes delas secarem? Não daria espaço nem tempo para respostas, muito menos para afagos na cabeça ou pressões nos ombros. Falaria sem parar, acrescentando em vez de pontos finais palavras, para ela, insultuosas como “mentira”, “castigo” ou “pena”. Seria capaz, até, de lançar raios de terror pelos olhos e sentir-se vitoriosa e forte, capaz de aguentar todos os ultrajes seguintes e atacar o medo por todas as frentes. Bateria a porta depois do pé, num gesto de desafio, e desceria as escadas em pulos, desta vez sem precisar sequer de tocar no corrimão.

Ou

Diria o seu nome pelo intercomunicador, adiantando logo que precisava de conversar, que tinha dúvidas e desconfianças que não a deixavam acalmar. Ouviria, assim, as expressões de sempre, daquela vez mais murmuradas, numa tentativa dele de apaziguar o ataque e controlar o momento. A partir dali, ele estaria a agarrar-lhe o pulso e a controlar-lhe a respiração, congelando-lhe o olhar num controlo sobre-humano que ela nem entendia. Ainda tentaria dizer uma ou outra frase, acabando por misturar sílabas e substituir advérbios por adjetivos. Até se dar por vencida, ainda recuaria a pele e elevaria a voz.


Num ou noutro "ou", tudo o que fosse dito seria testado, manipulado, subvertido, descontextualizado até, perdendo depois toda a força e toda a razão.


O carro travou a milímetros da sua perna esquerda e vendo o esbracejar indignado da condutora enervada, Eva levantou o braço e subiu o passeio. O prédio em frente, a porta entreaberta, o dedo na campainha, falar ou calar, ganhar ou perder. Voltou atrás, esperando o verde do sinal dos peões e atravessando retilineamente a estrada, espaçando as pernas para, apenas, pisar as riscas brancas.