25 maio 2009

Tal e qual


Os remoinhos do cabelo, a forma do rosto e a rebeldia que o faz correr pela casa, correr pelos dias, falar trinta palavras imperceptíveis por minuto e dar pulos gigantes e destemidos. O Tigy é assim. Um rapazinho completamente arrapazado. Um menino, pelo que me contam, em tudo igual ao Pai quando ele tinha esta idade. O ser mais parecido com a Mãe ou com o Pai facilmente se distingue nestes traços e ao lembrar-me enquanto criança sempre percebi que o meu filho nada tinha de mim.

A Beguinha era a criança que brincava dias inteiros fechada no quarto completamente sozinha. A menina que a mãe espreitava a meio da tarde certificando-se que ela se mantinha ali, no quarto, com as suas bonecas dispostas em fila como numa sala de aula.
Anos depois, a Beguinha era aquela que tinha torcicolos por ler livros inteiros de seguida, deitada com o pescoço debruçado no braço do sofá. Outros tempos volvidos, a Beguinha era a adolescente que jogava fins-de-semana inteiros o mesmo jogo de computador até conseguir passar mais um nível. Sempre mais um nível.
Pelo meio houve a Beguinha que fazia programas de rádio num gravador rudimentar e, a culminar tudo isto, existiu também a Beguinha que escreveu um livro e o enviou para umas quantas editoras. Sim. Aos 14 anos.

O Tigy muda de brinquedo a cada dez minutos e desmonta os bonecos apenas para nos pedir para o ajudarmos, incluindo-nos, como se nem notassemos, nas brincadeiras. O Tigy nunca está calado. Descreve, à maneira dele, tudo o que faz com o barco dos piratas, as histórias que inventa entre os meninos perdidos, a Wendy e a Sininho, as lutas de espadas entre o Capitão Gancho e o Peter Pan. O Tigy vê várias vezes seguidas o mesmo filme ou, então, vê várias metades de filmes de seguida. O Tigy vira a página do livro quando o texto ainda vai a meio e, para ele, pintar um desenho é cobrir um qualquer boneco com dois, três traços no máximo. Para o Tigy os dias são cheios de brincadeiras diferentes, que se sucedem num turbilhão de risadas, como se a diversão que se seguisse fosse sempre melhor que a anterior.

Há uns dias, o Tigy não me deixou fechar uma porta porque o Manel ainda não tinha passado. Segurei a porta, fazendo-a descrever um ângulo recto, e deixei passar o Manel, com todo o cuidado para não o trilhar. Há uns dias, o Tigy brincou comigo e com o Manel na sala da nossa casa e guardámos para ele o lugar mais confortável no canto do sofá. Há uns dias o Manel comeu à nossa mesa e até já passeou connosco, sentado no banco de trás do nosso carro.

A Beguinha na idade do Tigy ficava sentada numa manta no chão do pátio da casa da avó e falava tardes inteiras com o Pedro e a Paula. Todas as tardes o Pedro e a Paula eram atropelados pelo triciclo da mana e todas as tardes a Beguinha chorava porque a mana tinha passado por cima deles.

O Pedro e a Paula não existiam.
O Manel também não existe por aqui.

Então, por estes dias, eu percebi no que é que a Beguinha e o Tigy se parecem mais. Assim, eu hei-de continuar a falar com o Manel dele, a pôr-lhe o cinto antes de o carro andar e até posso arranjar-lhe um prato para jantar. Porque, um dia destes, pode ser que o Tigy se sente ao colo da Paula e deixe o Pedro empurrá-lo no baloiço. E juntos vejamos que somos tal e qual. Nós dois e tanta imaginação.



Ilustração - Catarina Fernandes

12 maio 2009

Se eu fosse...

...um dia. Era:


"UM DIA ASSIM

Há qualquer coisa de mágico em recordar um dia assim. Talvez por o saber único ou insubstituível. Talvez por ter a certeza que venham quantos filhos vierem nada será como a primeira vez.
Tudo estava combinado com a médica: dia 16 de Agosto de 2005, às 38 semanas de gravidez, iria até à CUF Descobertas, em Lisboa, para saber como se sentia o Tigy dentro da minha barriga.
As malas dentro do carro. Papá ao volante. Mamã a suspeitar que o regresso a casa já seria a três.
No hospital não houve espaço para grandes indecisões: o bebé está pronto para nascer. Toca a instalar no quarto, a trocar a roupa, a deitar na cama, a avisar a família. O Tigy estava mesmo a chegar!
Da entrada no hospital às oito da manhã até às 19h45, quando vislumbrei o meu bebé apesar de encadeada pelos holofotes poderosos da sala, não cheguei a descobrir o que eram, afinal, as tão temidas, as tão faladas, dores de parto. Na verdade, ou o meu corpo não quis reagir à medicação para acelerar as contracções; ou então o meu bebé queria mesmo continuar refugiado dentro de mim por mais uns tempos.
Já o dia me parecia interminável quando ouvi da boca da médica: “Vamos ter de fazer uma cesariana. Num instante vai ver o seu bebé”. E foi mesmo.
No caminho do quarto para a sala de partos não sei se era o pânico ou a ansiedade quem mais me acompanhou, mas levei comigo os olhares excitados de todos os que aguardavam pela chegada do bebé Tigy.
Lembro perfeitamente algumas sensações estranhas da cesariana: a epidural que me foi roubando os movimentos de metade do meu corpo; a descontracção da equipa médica, falando de casas de férias e do jantar dessa noite enquanto mexiam e remexiam na minha barriga; e a força com que arrancaram o bebé de dentro de mim, como se realmente ele estivesse empenhado em não sair dali nunca.
No meio de tanta coisa num só dia talvez tenha custado mais essa estranha sensação de que nos roubam uma parte de nós que não regressará nunca, uma companhia de nove meses, um segredo, um refúgio.
No entanto, e perante tudo o resto, isso é tão pouco. Ganha-se num só dia uma nova vida, uma completa mudança de medos e deslumbramentos. Ali, a meu lado na cama, tinha 3 quilos e 100 gramas de gente em 49 centímetros. Ali, mesmo debaixo do meu braço, estavam escassos minutos de vida numa promessa para a vida inteira.
Do dia em que o meu Tigy nasceu não recordo o pânico do desconhecido; nem sequer penso no pavor às agulhas e aos tubos e a um sem-fim de actos médicos; até já esqueci as dores que descobri quando, horas depois da cesariana, coloquei, pela primeira vez, os pés no chão. Porque do dia em que nasceu o meu filho ficou apenas uma ideia concreta do que é a felicidade, de como ela se pode abraçar e tocar e sentir e conter. Porque no dia em que nasceu o meu filho nasceu também este medo, persistente, de não ser sempre perfeita, de não ser sempre a mãe ideal. E essa é que é uma batalha para a vida, que merece uma entrega sem fim. Por ele."