27 julho 2010

Comigo da infância até aqui


Aos 8 ou 9 anos, talvez, os sábados eram dias inteiros fechada no meu quarto com as bonecas dispostas em filas em cima da cama. Em frente a cada uma delas estava uma almofada que imitava uma secretária e o quadro era a porta do roupeiro. Aquela era a minha sala de aula, quando eu ainda me imaginava, como a Mãe e o Pai, professora na minha vida de adulta. Não me recordo já que lições ensinava eu a alunos tão bem comportados, mas sei que riscava as folhas com certos e errados a vermelho e agitava uma pequena cana em direcção à turma, num tom ameaçador que ninguém temia. Sei que os sábados passavam a correr e que, lá pelo meio da tarde, a minha Mãe entreabria a porta do quarto apenas para se certificar que eu ainda ali estava, nas minhas brincadeiras solitárias que sempre fizeram de mim a mais sossegada das filhas.

Aos 10 ou 11 anos, talvez, lia livros inteiros de seguida numa posição desconfortável: semi-encostada ao braço do sofá da sala. Hábito que me deu uns tantos torcicolos e, ainda hoje, quando olho na estante o livro "Graças e Desgraças da Corte de El-Rei Tadinho" consigo sentir aquela dor aguda na parte de trás do pescoço. Nesses anos lia tudo o que encontrava lá por casa, ainda repetia livros até saber algumas páginas de cor e procurava novos nomes e novos títulos nos excertos dos manuais de Língua Portuguesa.

Aos 12 ou 13 anos, talvez, veio o computador. Dias inteiros a jogar, tentanto bater os meus próprios recordes, numa teimosia parva de ganhar sempre sem perder uma vida que fosse. Nessa altura eu tinha o jogo para as neuras, o jogo para reflectir, o jogo para gastar tempo, um jogo por momento. E se havia coisa fantástica era deitar na cama à noite e sonhar com os labirintos por descobrir, acordando na manhã seguinte com os mais difíceis esquemas completamente desvendados.

Aos 14 anos comecei a escrever. Cheguei mesmo a inventar uma história, a desenhar uma personagem, que era a Ana, lembro-me bem. Com os anos esse livro escrito na adolescência perdeu-se em disquetes que já não abrem e diluiu-se nos desabafos de uma idade que já não é a minha.

Do tempo da sala de aula dentro do meu quarto, até às horas frente ao computador, quando o ecrã do avô ou bisavô do Word ainda era azul, une-me uma linha contínua e constante: a facilidade com que sempre estive a sós comigo.

Porque pelo meio, em idades que já não sei precisar, estão os programas de rádio feitos a sós, num gravador cinzento com um pequeno microfone, em que eu era apresentadora, produtora, assistente técnica e até a mais fiel das ouvintes. Autênticos êxitos de audiências que ainda se conseguem ouvir numas cassetes esverdeadas que a minha Mãe guarda lá por casa.

Pelo meio destes anos vive ainda um tempo em que fui bailarina e, ao som de uns lp's de música clássica, ensaiei coreografias elementares para espectáculos que nunca existiram, inspirada nas aulas que frequentava e no velhinho livro "Anita no ballet". Depois disso, passava muitas horas a cantar com os Onda Choc numa tentativa frustrada de promover um talento vocal que nunca tive.


Mesmo lembrando as tardes com os primos às voltas de bicicleta, as visitas das colegas da escola que acabavam sempre em croissants de chocolate, os filmes para rir partilhados com a mana nas férias de verão, os passeios com o Pai no carro com conversas intermináveis e ao som da Renascença, as idas aqui e acolá com a Mãe em percursos que ainda hoje são os nossos... Mesmo assim, se há uma pessoa que tenha vivido comigo a minha infância essa pessoa sou eu. Se há pessoa que cresceu comigo, que brincou comigo, que esticou ao meu lado esta imaginação perigosa que me faz ser como eu sou, essa pessoa fui eu.
De lá, da infância, até aqui, a este momento, vim eu e este estar bem enquanto estou assim. Comigo.



Ilustração - Mir

23 julho 2010

Ele, o sorriso, a mala da roupa e os brinquedos


Ía com um sorriso. Com a mala cheia de roupa e os brinquedos preferidos.
E para mim poderia ser este o momento para pôr tudo em causa. As opções tomadas. A confiança entregue sem retorno. Os passos dados sem um destino certo.
Vê-lo sair assim, como se saísse de mim outra vez, como se me o arrancassem mas para o levarem para longe e não para o depositarem nos meus braços como quando o vi pela primeira vez.
Há uma violência enorme nesta ida, nestes tempos que chegam e que parecem a eternidade e mais além. Chegam como um castigo, como um aviso, como a paga mais cruel para os meus maiores erros. E tudo isto teria sentido se eu aceitasse este dia como um ajuste de contas da vida para comigo, como a pena justa para o pior crime. Então, eu entenderia a distância, a solidão, até este sentimento permanente de falha, de perda, de culpa.

Só que ele vai com um sorriso. Com a roupa que me ajudou a escolher e os brinquedos que mais falta lhe fazem.
E eu fico entregue a mim. Só a mim. Pela primeira vez numa vida inteira.
Vendo-me como a pior das companhias, sem entender bem que fazer comigo mesma para vencer o tempo.
Então, as horas que faltavam para tanta coisa passam a sobrar para coisa nenhuma. Então, o medo que se teve que isto um dia ainda doesse mais, passa a ser o medo que isto não pare de doer nunca. Então, a certeza que se tinha de que se viveu o que se sentiu, passa a ser a certeza que para se ser feliz num momento se pode ficar infeliz para a vida inteira.

E ele lá foi com o seu sorriso. A mala pesada com quase toda a roupa que tem e os brinquedos mais giros que ajudou a juntar.
E eu aceito o momento sem pôr nada em causa. Repito as minhas certezas.
Guardo-me comigo no melhor que podem ter as saudades. Renovo o mais forte dos meus sentimentos para me segurar. Acredito que esta é a vida que eu fiz por merecer. Entendo que a vivia toda outra vez e revivo-a mesmo, aqui por dentro.

E depois ele vai voltar. Trará o sorriso, a mala com a roupa, os brinquedos que gosta.
E eu estarei à espera. E tudo, dentro de mim, continuará imperturbável. A maior das certezas dentro do mais sincero dos sentimentos. Apesar da dor, apesar da culpa.




Ilustração - Paulo Galindro

22 julho 2010

Uma canção e uma história #8

Uma canção que me faz dançar





Nunca
forte o suficiente. Nunca feliz o bastante. Nunca com tamanha sorte ou todo o azar. Nunca completamente completa ou muito perto de satisfeita.
Como aquele gole de coca-cola que faltava no fundo da lata. Como aquela cena final que devia estar depois da ficha técnica do filme. Como a página seguinte que não existe num livro bom. Como a pessoa que faz falta e é aquela que nunca vai estar.

Sempre
perfeitamente imperfeita. Sempre aquém. Sempre à espera de... Sempre a tentar ou a insistir numa tecla avariada.
Como um caminho que se segue paralelo ao caminho que leva a algum lado. Como a roupa errada para o tempo incerto. Como uma receita estragada que se prova duas vezes. Como um comboio que se apanha no sentido contrário.

Talvez
a aprender. Talvez a merecer. Talvez a acertar desta vez dentro dos erros das escolhas ao lado. Talvez quase lá.
Como o último copo que se lava de uma grande pilha de louça suja. Como a palavra que faltava descobrir na mais complexa das sopas de letras. Como a resposta final que se acerta para o teste merecer 100%. Como um último abraço antes das despedidas.

19 julho 2010

Saber de mim?

Fiquei na página cento e pouco disto


e nunca mais abri livro nenhum.


Vi este (grande) filme em três ou quatro tentativas

e nunca mais comecei outro.


Ouço este álbum enquanto conduzo


e costumo ficar pela faixa 6.

Ao lado da minha cama, pelo chão, revistas destas

andam dobradas lá pela página 40 e pouco.


Saber de mim? Pela metade.

17 julho 2010

Por acaso

apanhei o programa na rádio. Dispensava o tema mas por acaso fiquei a ouvir e acabou por fazer sentido, dentro daquela viagem, ouvi-las falar sobre ele. Às tantas uma delas lembrou-se da frase "O problema não é roubar, é ser apanhado"...
Por acaso nunca tinha visto a coisa dessa forma.
E nem deve ser nada por acaso.

14 julho 2010

O meu filho em 10 pontos





Ponto número 1 – Já muito antes do Ronaldo vir comparar os golos – ou a falta deles - ao ketchup o Tigy enchia o prato com esse maravilhoso ingrediente em tudo o que é receita culinária, num exagero enjoativo mas que o ajuda a comer um pouco de tudo.

Ponto número 2 – Ao fim de menos de 2 meses vai no segundo par de óculos.

Ponto número 3 – O seu novo entretenimento preferido: estes brinquedos vão para casa do Pai, estes vão para casa da Mãe.

Ponto número 4 – Pediu para pôr uma tatuagem na perna e outra no braço, dizendo que o não-sei-quantos também tem...

Ponto número 5 – Todos os dias (mas todos os dias!) vira o copo de água ao jantar dizendo logo a seguir: “Foi um acidente!”.

Ponto número 6 – Em cada intervalo do canal Panda tenta convencer-me que eu quero muito ter a malinha da Polly.

Ponto número 7 – Pergunta muitas vezes assim do nada: “Mãe tu já não estás doente, pois não?”

Ponto número 8 – Para todos os efeitos, continua a ser a ovelha negra de uma turma digna de análise, já que todos os outros miúdos são estranhamente perfeitamente perfeitos.

Ponto número 9 - Não aceita sandálias abertas à frente, diz que tem vergonha de mostrar os dedos.

Ponto número 10 – Todas as noites olha para o meu portátil e ao ver a palavra Toshiba exclama: "Computador é com T?".




Ilustração - Graham Franciose

13 julho 2010

Foi então

que o meu Pai interrompeu o silêncio do carro em andamento e prometeu:

"Nem tudo pode correr sempre mal. Algum dia as coisas têm de começar a correr bem."

E eu sosseguei. E continuei a descontar os quilómetros

da auto-estrada.

12 julho 2010

Uma canção e uma história #7

Uma canção que me lembra um momento






Naquele preciso momento - que com a pressa dos anos se transformou numa mistura de acontecimentos e de antes e depois sem fio que os conduza - nascia a maior certeza de todas e venha quem viver para mudar isso.

Foi o momento da descoberta, muito antes da dor, ainda antes do medo. Foi o momento do deslumbramento. Como se a vida me tivesse guardado para aquele instante, para aquele sentimento. Quando nos damos mais do que aquilo que recebemos, quando fazemos de nós parte do outro e do outro tudo o que há em nós.

Foi o momento certo para aprender. Para crescer. Para apressar os dias na pressa de os viver. Para acreditar que nada acontece por acaso e que os acasos são objectivos por planear ou um ou outro sonho inconfessável.

Naquele momento - que agora me parece um tempo - não havia outros que me abalassem ou acidentes que nos atropelassem, não havia margem para erro, não havia dúvidas, nem receios, nem hesitações, nem réstea de passado que nublasse a vista, nem mesmo perspectiva de futuro que entorpecesse o pensamento. Tudo era certo. Constante. Inabalável. Tão firme. Tão eterno. Tão seguro.
E lembrado assim, com tamanha clareza, aquele tempo volta a parecer apenas um momento, ou então, chego a senti-lo um dia, umas horas, escassos minutos ou um ou dois segundos de um olhar.

Foi o momento de todas as verdades, de todos os exageros, de todas as entregas. De uma felicidade imensa, maior do que tudo, maior do que eu. E olhado assim - para trás - e lembrado assim - misturado com tudo o que veio depois - deixa de haver espaço para saudades. Então aparecem as dúvidas. Trocam-se verdades por desconfianças. Substituem-se as melhores dádivas pelas piores entregas. Rejeita-se a felicidade do passado para justificar a crueldade do presente. Apaga-se o que de melhor ficou para trás para acreditar que...
"Amanhã será um novo dia
Certamente eu vou ser mais feliz
".

05 julho 2010

O bom, o mau e o pior


O Bom

Fim de tarde com uma amiga entre "agora contas tu, agora conto eu", um doce e um sumo, uma gargalhada e uma quase-lágrima.

O Mau

Juntar retalhos de memórias e relatos de terceiros e fazer planos amargos em dias com 40 graus.

O Pior

Ser fácil de mais ter ideias más dentro de sentimentos feios, como vingança, desprezo, raiva...




Ilustração - Linda Ketelhut

01 julho 2010

Estou aqui


Faz hoje precisamente 10 meses que fiz 30 anos. Ao longo desse dia fui apontando no meu caderninho de rascunhos e outras tralhas os nomes de quem ligou, apareceu, escreveu mensagem, mandou e-mail. Ao todo contei 53 nomes, 53 pessoas que se lembraram que eu, naquele dia, fazia anos, 53 pessoas que me quiseram dizer "Parabéns", "Muitas felicidades", "Que este seja um ano repleto de sonhos concretizados", ou outras frases batidas mas, arrisco dizer, 53 vezes sentidas.
Nestas últimas semanas não tenho apontado os nomes de quem tem ligado, aparecido, escrito mensagem, mandado e-mail, convidado para almoçar, jantar, lanchar, tomar um café, ir ao cinema, à praia, desabafar, receber abraços, simplesmente estar junto, presente, perto. Mas, nas últimas semanas, tenho assistido ao mais incrível fenómeno que este (meu) mundo cheio de defeitos tem para dar: o contágio da solidariedade, a propagação da amizade.
Sei que a lista, se existisse, já tinha ultrapassado os 53 nomes, sei que muitos nomes poderiam aparecer muito mais do que 53 vezes, sei que cada palavra e cada gesto traz 53 vezes de conforto, 53 vezes de importância. E sei ainda que quem não está na lista não faz falta, nem para dizer "Parabéns" e "Muitas felicidades", nem para mostrar simplesmente "estou aqui".

A tantos - que são todos - muito obrigada.


Ilustração - Holly Clifton-Brown