12 agosto 2011

Foi então

que ela disse:
"De férias... hã?! Que bom!"

E eu pensei: "Ah! Pois é! Ainda nem tinha notado..."

E, naquele momento, 23 dias pareceram quase nada para quem tem de desarrumar a cabeça toda,
procurar os sítios certos e voltar a encaixar tudo outra vez. A ver se depois isto funciona.

20 julho 2011

Em Julho
7 razões ao acaso para dias de silêncio

ou

Como o tempo passa sem sentirmos quando tudo está bem

ou

Mais um tomo na teoria do "escreve-se mais quando dói
e menos quando se está feliz"

1. O Tigy diz que vai casar comigo a 19 de Dezembro, enche-me de frases como "Adoro-te" e "És a maior" e torna-se cada dia mais curioso e mais sensato.

2. Desde que comecei a ler "O Monte dos Vendavais" começou o verão mais ventoso de todos os tempos. (Aviso que ainda vou no capítulo XIV...)

3. Não há nada que me deixe mais orgulhosa do que estar com pessoas que não via há algum tempo e todas dizerem: "Bem, o Tigy está tão diferente..." e o diferente significar: muito melhor.

4. Gosto cada vez mais da forma natural como digo o que penso a quem merece ouvir. Explicaram-me que isso quer dizer "auto-confiança", coisa que tinha perdido e, finalmente, reencontrei.

5. Ando a treinar fazer ovos estrelados, porque eu gosto, e puré de maçã, porque o Tigy gosta.

6. Ao fim de tantos anos enganada descobri que adoro ananás na pizza, que ouço mais música sem letra do que com ela e que é possível emagrecer um quilo numa semana sem passar fome.

7. Sei enumerar mais razões para acordar de manhã do que para deitar à noite e sei dizer, muito depressa, 20 nomes de pessoas realmente minhas amigas e sem as quais eu não conseguiria viver.

14 julho 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #13

A pergunta:
Mãe,
quando eu era bebé o que é que eu comia?

A resposta determinada:
Então, leite, papas e sopa.

A desconfiança:
E eu gostava?

A certeza:
Sim, gostavas muito. Do que tu mais gostavas era de Nestum de chocolate.
Sabes como lhe chamavas? “Papa do caco”!

Ele ri-se muito e, depois de uns segundos de silêncio, remata o diálogo com um tom nostálgico:
Ai ai... Velhos tempos!

30 maio 2011

Olha

imagina as coisas como uma telenovela:
quando a história acaba os personagens desaparecem.
Depois, os atores têm duas hipóteses de futuro:
ou surgem na telenovela seguinte, com outro papel, com outra importância;
ou, simplesmente, terminam ali a carreira
e, mais dia menos dia,
quando nos cruzarmos com eles na rua,
já nem os reconheceremos entre a multidão.

Para mim, o mundo é mesmo assim:
quando a história acaba,
as personagens acabam também
e o que fica dos episódios passados
são lembranças certas no tempo em que estão:
lá atrás.

Porque o que realmente interessa é tudo o que está por acontecer
na telenovela seguinte.

24 maio 2011

Saber de mim?

Hoje publico:


Ou
um FURTO, como este
ou
uma CONSTATAÇÃO como esta

Há pessoas más.

ou
um 2/3 DO MEU CÉREBRO SÃO LETRAS DE CANÇÕES do género desta

Tão bom pudesse o tempo parar E voltar-se a preencher o vazio É tão duro aprender que na vida Nada se repete, nada se promete E é tudo tão fugaz e tão breve

ou
um GOSTO NÃO GOSTO assim

Gosto da minha vida.
Não gosto da vida dos outros.

ou
uma PESQUISA completa da diferença entre entender e aceitar

entender (ê) - Conjugar
(latim intendo, -ere, estender, pretender, estar atento)
v. tr.
1. Apossar-se do sentido de (o que ouvimos ou lemos).
2. Ser de opinião; julgar.
v. intr.
3. Ser entendedor.
4. Superintender.
5. Infrm. Contender, armar rixas.
v. pron.
6. Compreender-se (a si mesmo).
7. Referir-se; ser concernente.
8. Estar de acordo (duas ou mais pessoas).
9. Combinar.
s. m.
10. Maneira de pensar ou de ver. = entendimento, juízo, parecer, opinião


aceitar - Conjugar
v. tr.
1. Receber o que é oferecido.
2. Estar conforme com.
3. Admitir.
4. Receber com agrado.
5. Obrigar-se a pagar (uma letra).


ou um exemplo de EXPRESSÕES (IN)FELIZES

Calma


ou esta REGRA DE SOBREVIVÊNCIA

Quando não se tem a certeza do caminho,
mais vale seguir em frente.



Ou
então publico tudo.

Ou
então não publico nada.

13 maio 2011

Olha

o momento perfeito da vida é quando sentimos falta de um comando:
para carregar no pause e ficar tudo assim,
tal e qual como está.
Os dias dentro destes dias,
as pessoas nos seus lugares,
o clima com esta temperatura,
as taxas de juro nos valores actuais.

Nada aumentar.

Nada diminuir.

Nada começar.

Nada acabar.

O mundo em estado de pausa.
Tal e qual como está.

09 maio 2011

Eu hoje respondo assim

Acredito que um dia...
vou concretizar um dos meus maiores sonhos.

A melhor coisa que podem dizer de mim é...
que mereço tudo o que de melhor a vida tem para me dar.

E a pior?
Que mereço o pior que já me aconteceu.

Se encontrasse uma mala com um milhão de euros...
abria um negócio só meu.

De entre as coisas que me causam medo contam-se...
as pessoas invejosas.

A primeira coisa que faço de manhã é...
abrir a cortina e ver o tempo.

A última SMS que enviei foi...
a melhor das respostas à melhor de todas as mensagens.

Ao sábado à noite é provável que me encontrem...
em casa a ver um filme.

E agora apetecia-me dizer isto:
Há sempre um dia certo para tudo. Até para falhar.




RSF | Beguinha
Inquérito da revista Blitz - Abril 2011

08 maio 2011

Uma escolha e uma história #6

Uma canção




O corpo descobre-se e desdobra-se em vontades e os desejos são coisas puníveis e sujas, capazes de suscitar pecados e crimes. As manobras da cobiça são segredos inconfessáveis, escondem-se entre a vergonha e o medo, debaixo de tapetes ou dentro de gavetas. Para lá das portas e das janelas fechadas o mundo é novo e impenetrável, do lado da rua fica tudo o que é inseguro e errado, disfarçado em movimentos rotineiros e diálogos banais.

Há um tempo do dia para pôr tudo no lugar: acertar o corpo com as suas ambições desmedidas, levá-lo ao comando das emoções, dar-lhe tudo o que ele pede, multiplicar quereres até. E ceder a tentações.
Tudo retilineamente correto. As exigências do tempo dentro de resistências vãs.

03 maio 2011

Por acaso

de tempos a tempos as coisas mudam:
escrevo menos e leio mais
escrevo menos e penso mais
escrevo menos e converso mais
escrevo menos e rio mais
escrevo menos e sou mais feliz.

E não deve ser nada por acaso.

16 abril 2011

Coisas do meu talento






Era uma bailarina minúscula, de saia de tule aos folhos e collants cor-de-rosa, cabelo arrepiado e queixo altivo, sempre na posição certa, de pés em V, colados nos calcanhares, e braços arqueados num gesto delicado. Os anos em que dancei ballet fizeram de mim uma menina feminina e suave, contida e perfeccionista. Residia todo o encanto naquelas manhãs de sábado de mão na barra de madeira e olhar no espelho. Dançar era uma forma de comunicar, era uma linguagem secreta, num diálogo íntimo de uma criança sempre demasiado metida dentro de si própria.
Com os anos, com a idade, com as exigências da escola e as contingência de morar longe dos grandes centros, deixei a dança para outros destinos.


No fim da aula, ela distribuía as cenas para o dia seguinte. Entre retalhos de telenovelas brasileiras e excertos de peças de teatro, os diálogos envolviam discussões ou desabafos, banalidades ou revelações que mudavam a história. Em menos de um ano de curso de representação, eu já tinha dançado com um par numa cena de sedução, já tinha perdido um filho e chorado por isso, já tinha trocado estaladas num momento de fúria e descontrolo, já tinha adormecido e acordado, frente às câmaras, aos professores e aos colegas. Mas, desta vez, a aula envolvia beijos e eu, afundando-me na cadeira, não estiquei o braço para receber as minhas folhas e, naquele instante, desisti de ser atriz.


Enquanto eles falavam, as perguntas sucediam-se na memória, sem rabiscos no papel ou dúvidas que engasgassem as frases. Naqueles segundos, de gravador na mão e entrevistado disponível, eu era a jornalista destemida, sem espaço para hesitações, vergonhas ou embaraços. E corria bem. Saía a pergunta e chegava a resposta. Numa tarde de calor, percorri ruas onde nunca tinha andado para tentar a sorte numa embaixada de um país distante. Lá dentro, levaram-me por túneis e elevadores simulados, até alguém que falando mal qualquer língua que eu entendesse, se recusou a responder a perguntas ou a ouvi-las, até ao fim, sequer. Sem saber regressar sozinha ao portão de saída, segui o caminho labiríntico frustrada pela história que não levava comigo. Uns dias depois, na imprensa concorrente houve alguém que assinava um artigo idêntico, que tinha feito as perguntas até ao fim e que teria percorrido aqueles túneis levando a história até ao portão de saída. Acho que foi aí que percebi, que certo jornalismo vai muito além de fazer perguntas e receber respostas, de imaginar o artigo e fazer a história. E mudei de sonho.


Aos 14 anos escrevi um livro. Sei que a personagem principal se chamava Ana e era uma adolescente como eu. Imprimi tudo e enviei para as editoras que conhecia. Por aquela altura, ganhei alguns concursos pelas coisas que escrevia, mas aquele meu projeto de livro mereceu cartas de agradecimento ou o silêncio apenas. Com o tempo, esses textos perderam-se nas disquetes que hoje já nem funcionam e escrever foi o talento que restou quando deixei de calçar as sapatilhas de pontas e rodopiar em frente do espelho, quando larguei as máscaras e desmarquei os castings, quando arrumei o gravador e fechei os pontos finais. Tudo porque ficava sempre aquém do outro, do lado. Da menina que dançava melhor em toda a classe, da atriz que tão naturalmente beijava como gritava, da jornalista que não tolerava perguntas sem resposta.
E, por cada livro que acabo de ler, por cada escritor que conheço e me desarma, morre um bocadinho do sonho final, para resistir a dúvida:

Todos temos um talento. Onde andará o meu?


Ilustração - Alejandra Karageorgiu

11 abril 2011

2/3 do meu cérebro são letras de canções





"Ser capitã desse mundo Poder rodar sem fronteiras Viver um ano em segundos Não achar sonhos besteira Me encantar com um livro Que fale sobre vaidade Quando mentir for preciso Poder falar a verdade"

28 março 2011

Foi então

que ele me viu a chegar à escola, com o guarda-chuva aberto, espreitando na porta da sala procurando-o entre as crianças. E sorriu. Sorriu muito enquanto corria a buscar o saco, o casaco, os papéis dos recados meio dobrados e disse
"Mãe"
prolongando a sílaba e agarrando-me as pernas.

Correndo para o carro, eu e ele, muito abraçados, trocámos beijos e repetimos saudades. E debaixo da chuva, debaixo do chapéu, tornámo-nos as pessoas mais felizes do mundo.

27 março 2011

21 março 2011

Coisas que acontecem na vida








Naquele fim de tarde o casaco que tinha ido para a escola não voltou e o Tigy, abrigado com um qualquer dos perdidos e achados, disse no seu tom pesaroso: "Perdi o casaco, Mãe". Num chorrilho de frases-feitas, ataquei o filhote com coisas como "Já é o segundo casaco que perdes este ano", "Ainda comprámos o casaco há tão pouco tempo", "Tens de tomar conta das tuas coisas", "Onde puseste o casaco quando o perdeste", até ser interrompida pelo Tigy que no seu tom afirmativo diz: "Mãe, é a vida", carregando no i e estendendo a última sílaba de todas.
Segurando a imediata vontade de rir, tentei mais um ou outro comentário em forma de reprimenda como "Acho bem que ainda encontres o casaco" ou "Qualquer dia deixo de te comprar casacos e andas ao frio"... mas ele fechou o assunto completando: "Mãe, são coisas que acontecem na vida".

As coisas que acontecem na minha vida também já foram casacos perdidos na escola e raspanetes da Mãe por causa das nódoas na bata. Também já foram brinquedos partidos e a sala desarrumada. Também já foram o jantar espalhado no prato sem ser comido e as horas a mais a ver televisão. As coisas que acontecem na minha vida também já foram testes com notas abaixo da média e trabalhos de casa feitos à última da hora. Mas também já foram os instantes enquanto se procura o nome numa pauta de exames afixada na parede ou se entra numa sala hostil para uma entrevista de emprego.

Há uma espécie de balança que trazemos na mente que vai adaptando o peso dos pratos à medida que as coisas que acontecem na vida vão mudando. Perder um casaco passa a pesar menos quando se tira a primeira negativa num teste e a nota menos boa perde valor quando se chumba mesmo a uma disciplina, assim como tudo isso fica desprovido de qualquer interesse quando não se é escolhido para uma vaga de emprego o que, por sua vez, acaba por não ser nada quando falta trabalho ou falha alguém. Com a idade, com o tempo, há coisas da vida que perdem peso para que outras apareçam e se agigantem.
Alguns problemas deixam de ser problemas quando surgem outros maiores e esta lei de compensações e proporções persegue-nos, ou guia-nos, mesmo que nem nos apercebamos dela.

As coisas que acontecem na minha vida agora nunca teriam o sabor que têm se eu não tivesse experimentado todas as outras que aconteceram antes. As coisas que eu tenho agora a acontecer na minha vida são o resultado desses sucessivos equilíbrios dos pratos da minha balança.

Então, olhar para trás é descobrir que afinal nunca há melhor do que o presente, nunca há melhor do que as coisas que acontecem agora na nossa vida, por muito que sejam casacos perdidos e reencontrados na escola ou dias de calor depois de semanas de chuva.

O que fica do passado é o eterno jogo da comparação de problemas, da importância que eles têm num momento e de como a perdem totalmente um instante depois. Sim Tigy, tu é que tens razão. No final das contas, são apenas coisas da vida. Coisas que acontecem na vida.

Ilustração - Monica Armino

15 março 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #12

A pergunta:
Mãe,
porque é que existe o trabalho?

A resposta imediata:
Então, para ganharmos dinheiro para comprarmos coisas...

A interrupção, a choramingar:
Já sei que me vais comprar roupa...

11 março 2011

Olha

quando começar a chover
e as nuvens muito negras que vias por cima da tua casa
explodirem no céu como bombas de água,
não feches portas e janelas,
não escondas os olhos nem curves as costas,
não mudes os planos ou alteres os horários,
não troques de roupa nem os sapatos.
Simplesmente,
deixa chover.

05 março 2011

Saber de mim?

Conheci uma mulher de armas


e as armas muito próprias de outra mulher


Vi o lado cor-de-rosa da sumptuosidade



e o lado mais negro da miséria



Ando perdida e enleada nas 1030 páginas deste livro




e reencontrada para além do "como nunca" e do "como sempre".

02 março 2011

"Por falar se ganha, por falar se perde"

Correu a atravessar a estrada, desprezando a passadeira e o sinal vermelho para peões. Havia uma ou outra prioridade a cumprir, acima das regras de trânsito ou das normas do bom senso. Nos ouvidos, para lá de uma buzinadela aflita e de um grito de criança com birra, Eva trazia duas ou três frases ditas há minutos, escutadas sem querer ou memorizadas sem esforço. A verdade surgia-lhe sempre assim: em acasos sem acaso, em segundos escassos de gente apanhada desprevenida.
Depois, não havia regresso ao minuto anterior ou à memória passada, não havia botão que apagasse partes do cérebro ou recuasse o filme, não havia volta que se desse que a levasse para trás e a deixasse andar para a frente. Então, era preciso agir. E, voltando a mudar de rumo sem obedecer ao trânsito ou ao destino, Eva pensou.

Ou

Entrando pela porta da frente, subindo as escadas em lanços de dois e agarrando o corrimão entre o polegar e o indicador, admitiria que trazia a memória mais pesada e a língua salgada com aquilo que, a partir dali, saberia para sempre. Colocaria hipóteses em catadupa: teria ouvido bem? Seria essa afinal a verdadeira história? Tinha valido a pena calar-se quando lhe pediram segredo e arrancar a pele das feridas antes delas secarem? Não daria espaço nem tempo para respostas, muito menos para afagos na cabeça ou pressões nos ombros. Falaria sem parar, acrescentando em vez de pontos finais palavras, para ela, insultuosas como “mentira”, “castigo” ou “pena”. Seria capaz, até, de lançar raios de terror pelos olhos e sentir-se vitoriosa e forte, capaz de aguentar todos os ultrajes seguintes e atacar o medo por todas as frentes. Bateria a porta depois do pé, num gesto de desafio, e desceria as escadas em pulos, desta vez sem precisar sequer de tocar no corrimão.

Ou

Diria o seu nome pelo intercomunicador, adiantando logo que precisava de conversar, que tinha dúvidas e desconfianças que não a deixavam acalmar. Ouviria, assim, as expressões de sempre, daquela vez mais murmuradas, numa tentativa dele de apaziguar o ataque e controlar o momento. A partir dali, ele estaria a agarrar-lhe o pulso e a controlar-lhe a respiração, congelando-lhe o olhar num controlo sobre-humano que ela nem entendia. Ainda tentaria dizer uma ou outra frase, acabando por misturar sílabas e substituir advérbios por adjetivos. Até se dar por vencida, ainda recuaria a pele e elevaria a voz.


Num ou noutro "ou", tudo o que fosse dito seria testado, manipulado, subvertido, descontextualizado até, perdendo depois toda a força e toda a razão.


O carro travou a milímetros da sua perna esquerda e vendo o esbracejar indignado da condutora enervada, Eva levantou o braço e subiu o passeio. O prédio em frente, a porta entreaberta, o dedo na campainha, falar ou calar, ganhar ou perder. Voltou atrás, esperando o verde do sinal dos peões e atravessando retilineamente a estrada, espaçando as pernas para, apenas, pisar as riscas brancas.

24 fevereiro 2011

Eu hoje respondo assim

Qual é a tua coisa favorita em ti própria? E a que menos gostas?


Falar de mim é o que mais faço nestes Refúgios. Mesmo que, tantas vezes, isso surja disfarçado entre histórias alheias e metáforas rebuscadas. Contudo, quando a questão surge assim, tão direta e tão frontal, as palavras acobardam-se...
Podia dizer que gosto da forma das minhas mãos ou da curva dos meus joelhos. Podia dizer depois que não gosto dos meus pés, porque nem gosto de pés no geral, e dizer também que não gosto da saliência da minha barriga ou dos dias mais endiabrados do meu cabelo. Podia descrever-me assim e deixar por dizer que gosto, cada vez mais, de ser emotiva e transparente e gosto cada vez menos de ser fechada e um bichinho complicado que remói e remói os mesmos pensamentos. Para acabar, ocultava que gostei sempre das minhas certezas inabaláveis capazes de mudar o mundo e sofri sempre com a minha péssima tendência para fazer as opções erradas mesmo que depois, no final do dia ou no final da história, repita: "e não me arrependo de nada".

16 fevereiro 2011

Olha

às vezes dá-me vontade de escrever um cartaz que diga
"Nunca estive tão bem".
Tão em paz,
tão de acordo com o meu corpo,
a minha vontade,
o meu pensamento,
o meu tempo
e o meu espaço.
Nunca estive tão bem quando estou com o Tigy e somos os dois a nunca ter estado tão bem,
nunca estive tão bem sozinha a ver filmes deitada no sofá e a comer pipocas cheias de açúcar,
nunca estive tão bem a passear com os amigos, sem relógio, sem prazos, sem medos.
Só preciso mesmo é que me deixem assim:
a aproveitar sozinha o tão bem que estou.

15 fevereiro 2011

Por acaso

até já me tinha acontecido mas hoje voltou: um sentimento de saudade imensa do Tigy durante todo o dia, como se não o visse há dias ou mesmo semanas. A imagem do preciso instante em que me despedi dele na escola, pela manhã, sempre presente: ele com a bata vestida e o cabelo desalinhado, nas mãos o peluche que hoje levou para mostrar aos amigos e aquele ar perdido que às vezes lhe vejo.

Por acaso é um sentimento angustiante para um dia no trabalho. 
Por acaso já tinha acontecido. Mas aconteceu hoje. 
E não deve ter sido nada por acaso.

14 fevereiro 2011

Uma carta para... #3

A minha Mãe


Mãe,


A idade - a tua e a minha - tem-nos tornado mais amigas e mais parecidas, em tudo o que isso tem de bom e de menos bom, também. Tem-nos feito ver que esta coisa de mãe e filha vai muito além do que uma ensina e a outra aprende, do que uma dá e outra recebe. Esta é uma relação de partilha e de entregas mútuas. E essa tem sido a nossa história ao longo dos trinta anos em que és a minha Mãe. Somos suficientemente iguais para nos compreendermos e suficientemente diferentes para nos admirarmos e os pontos que nos unem são sempre indestrutíveis perante o resto. O resto que é a distância, o tempo, as rotinas, as divergências da vida, as falhas, as decisões, as gerações...
Incrível como me consegues surpreender tantas vezes. Pelas constantes demonstrações de generosidade, pelas batalhas dos outros que assumes como tuas, pela força que, quando era criança, não via em ti e agora invejo e absorvo. O tempo tem-te tornado numa mulher mais completa e mais entregue e eu, enquanto tua filha, só tenho ganho com isso. Pelo exemplo diário de investimento em ti própria, pelo constante passo à frente dado com firmeza mesmo quando parece que já não há caminhos para andar, pela crença vincada que dificuldades podem ser oportunidades e que as mudanças, quando chegam, são sempre para melhor.


As mães são os melhores exemplos, são as melhores conselheiras, são os colos mais seguros que temos. Tu, para mim, tens sido para além disso um espelho de como às maiores provas da vida se deve responder com tenacidade e como quando nada parece faltar há que inventar novos objetivos e novos motivos para avançar.


Muito além das conversas que temos, das opiniões que partilhamos, das histórias de uma e de outra que relatamos, das voltas que damos juntas e dos laços que unimos e apertamos diariamente, mesmo de longe, está um respeito que só tem sentido porque é bilateral: vai de mim para ti, porque és minha Mãe, mas sei e sinto com orgulho, que vai de ti para mim, porque sou tua filha. E o respeito que tenho por ti é feito dessa conquista diária de merecer o orgulho que tens em mim. Apesar de tudo.


Parabéns Mãe.


Da tua filha.

12 fevereiro 2011

Gosto Não Gosto

Gosto de segredos.
Não gosto de portas entreabertas, gavetas mal fechadas, tapetes engelhados, quadros tortos na parede, molduras inclinadas em cima dos móveis, cadeiras afastadas da mesa, ...

11 fevereiro 2011

Desejos


Não foi há muitos anos que ouvi algures essa história que se podem pedir desejos na primeira vez que se come um fruto, em cada ano. Os frutos, como quase tudo, já não têm bem épocas próprias ou tempos definidos para nascerem e morrerem, mas há sabores que só fazem sentido em certos meses do ano... insisto eu.
Esta semana acabou com chuva. Houve até trovoada, som que não ouvia há muito tempo, e os morangos no supermercado surgiram desfasados do estado climatérico de uma sexta-feira como esta. Fiquei a olhar para eles tão grandes e perfeitos, vermelhos e definidos, impecavelmente embalados e com um preço a ignorar. Foi então que me lembrei da história dos desejos e os pus no cesto, entre as porcarias que compro para estes fins de semana só comigo, com a casa em silêncio total, a televisão ligada mas calada, os cobertores no sofá, o computador no colo e sucessivas refeições de comida pré-feita e crepes com chocolate prontos em 3 minutos no micro-ondas.

Entre a fila para pagar, as compras no tapete rolante, os "pip's" sucessivos da rapariga da caixa, as coisas no saco plástico e o caminho para o carro, fui sempre a repetir para mim se devia mesmo ter comprado os morangos: "Ainda nem é primavera", "De certeza que não sabem a nada", "Caros... muito caros...".

Nem todas as sextas-feiras como esta são assim: tão caladas e tão vazias. Com tantas perguntas dentro de outras perguntas. Às vezes o silêncio sabe melhor. Às vezes isto tudo consegue ter mais sentido. Porque nem todas as sextas-feiras aparecem morangos no supermercado. Nem todas as sextas-feiras eu trago para casa um fruto novo para pedir um desejo enquanto lhe lembro o sabor, desde a estação do ano passado.
E, surpreendentemente, nem todas as sextas-feiras fico a olhar para uma embalagem de morangos grandes, perfeitos, vermelhos, embalados, caros, muito caros, pousados no balcão da minha cozinha e lhes pergunto: "E agora, que desejo peço eu?".



07 fevereiro 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #11

A pergunta:
Mãe,
achas que uma pessoa pode correr até ao fim do mundo?


A exclamação:
Não há fim do mundo, Tigy.

A certeza:
Há há, Mãe.
Sabes quando a água do rio vai a correr e cai?


O resumo:
Uma cascata?

A conclusão:
Sim sim... isso.
Aí é o fim do mundo.

06 fevereiro 2011

Foi então

que num acto ato convicto, consciente e peremptório perentório, este blogue adoptou adotou o acordo ortográfico.

05 fevereiro 2011

Eu hoje respondo assim*

Qual é a tua palavra favorita e aquela que menos gostas. Porquê?



Há uma palavra que gosto, particularmente: des-lum-bra-men-to. É uma palavra comprida e enrolada, com uma grande dose de emoção, é uma palavra escondida, com duplos significados, daquelas que não mostra à primeira entoação se diz toda a verdade ou toda a mentira. É uma palavra que digo poucas vezes, para não lhe gastar o sentido, e escrevo ainda menos para não lhe quebrar o encanto. É a minha palavra preferida porque guardada, dentro das suas 14 letras e das suas 5 sílabas, fica uma história que se resumiria só com uma palavra assim.

Uma palavra que não gosto? Não gosto de "sucedido" mas também não gosto de "precedido", nem de "superado" ou "extasiado". Mas às vezes digo ou escrevo ou penso... as palavras têm esse poder.








*Há um fenómeno, a que chamam "bloqueio do escritor", que de vez em quando também chega aqui. Quero escrever e falta um tema ou um rastilho que desate as palavras e as faça correr. Dizem que o "bloqueio do escritor" pode ser motivado por cansaço, stress, insegurança, esgotamento criativo... Eu tenho outras explicações, mas encontrei nas perguntas mais originais o incentivo ideal para a perda temporária de habilidade para continuar a escrever, ultrapassando os lapsos da imaginação e da criatividade. Do sentir até.

02 fevereiro 2011

01 fevereiro 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #10

A pergunta:
Mãe,
o que achas que é mais importante: o mundo ou os amigos?

A resposta hesitante:
Os amigos?!

A solução:
Não. Eu acho que não.
Amigos temos muitos, mundo é que não temos mais.

31 janeiro 2011

"Quem com ferros mata, com ferros morre"


Eva sabia que não resolvia nada, nem corrigia sequer. A vingança não era a melhor das soluções, não era o plano a cumprir. Mesmo assim, ela experimentou o seu sabor. Fez e refez o percurso na memória. Ensaiou os diálogos. Juntou todas as provas num mesmo lugar, certificando-se, peça a peça, que nada faltava, que não havia falhas capazes de pôr em causa a veracidade dos factos. Guardou até umas calças e uma camisola grossa, para aquele dia. Adivinhando um dia de chuva e frio, de um Inverno em curso. Viu-se na pele daquela mulher insensata e inconsequente, disposta a tudo para amargar a história e dissecar a ferida, abrindo outra. Certas noites adormecia dentro do plano e dormia com ele. Deixando-o ferver por entre os sonhos, tornarem-se uma mistura esquisita de gente com rostos trocados e acontecimentos misturados. De manhã, as ideias dissipavam-se com o vapor do banho e mostravam-se absurdas e mesquinhas, apesar de nunca perderem o maior dos sentidos.

Durante o dia cozinhava ódios e angústias de cada vez que perdia a razão, para se ver acompanhada, para que nada do que sentisse fosse em vão. Para atirar para fora de si a culpa ou o vazio.
Eva não queria perder, mas cumprir planos perversos exigia doses de coragem, ou de desprezo, ou de maldade, que ainda não tinha. Reunia uma lista imensa de razões que diziam que sim e de juízos que mostravam que não. Vivia em círculos desenhados na cabeça à volta de um tema que enjoava e enojava, que a fazia vomitar de raiva e rancor. Sabia que quanto mais cresciam os dias e as distâncias, mais se afundava encolerizada, respirando com dificuldade por entre os espaços em branco da memória. Terminava os dias com o plano definido e amanhecia, cansada, com tudo desfeito.


Começou a chover no preciso instante em que atravessou a rua, longe da passadeira, puxando as mangas da camisola grossa para proteger as mãos do frio. Repetia baixinho o nome das ruas que tinha de percorrer até lá, para não virar  numa esquina errada. E quando chegou, não precisou de dizer nada, nem abrir as folhas ou se desdobrar em respostas. A história aparecia refeita a partir dali.

29 janeiro 2011

Olha

eu estou sempre um passo à tua frente.
Por vezes, imagino-me até uma espécie de nuvem que
acompanha os cenários, as situações, os diálogos,
o sono e os momentos vãos.
Fico sempre indecisa entre cumulus e cumulonimbus.
Oscila com o dia ou com o passo que dei:
às vezes sei de coisas boas,
às vezes sei de coisas más.
Mas olha para cima
que eu estou lá.

26 janeiro 2011

Coisas do meu humor



Já tive um jogo de computador que jogava, precisamente, quando estava mal humorada. O jogo era um Tetris mas especial: quando se completava uma linha, seguia-se um conjunto de bombas que explodiam algumas das peças acumuladas no fundo. Não recordo já o nome do jogo, mas consigo ouvir ainda o som das bombas a rebentarem.

Já tive uma canção que ouvia, insistentemente, quando estava mal humorada. Alto. Muito alto! Repetidamente. Os sons daquela voz a doerem nos ouvidos, a ganharem formas e a perderem-nas de seguida. Quanto mais alto mais forte, quanto mais vezes mais perigoso e quanto mais insensato mais real.

Já tive um conto que fazia ainda mais sentido quando estava mal humorada. As palavras escritas nos lugares certos, alinhadas num rumo definido, que naqueles momentos assumia um nível de tragédia e terror imenso e gigante, maior do que as páginas, maior do que a história.

Já tive um percurso que fazia, unicamente, quando estava mal humorada. Seguia a pé, em passo sincopado, exagerando na força quando chegava uma ou outra subida. Passava nas passadeiras pela mesma ordem na ida e no regresso e mantinha as mãos nos bolsos e um zumbido nos ouvidos, uma espécie de banda-sonora do caminho.


Já tive uma ou outra razão para estar mal humorada, mas nunca tinha caído nesta estranha sensação de não estar mal humorada por coisa nenhuma mas estar mal humorada por tudo e por nada. Como se procurasse nos outros e na rua e no tempo e no que for, motivos para intensificar esse nervoso miudinho que parece um rastilho... prestes a rebentar. Como se este estado não fosse consequência de nada mas uma fatalidade, um vírus, uma inevitabilidade. Como se eu estar mal humorada não fosse culpa minha, nem fosse culpa da vida, da crise ou da vaga de frio, fosse simplesmente a melhor das desculpas para esconder o medo do vazio. Porque antes mal humorada que coisa nenhuma, antes mal humorada que nada.


25 janeiro 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #9

A pergunta:
Mãe,
tu achas que as meninas conseguem ganhar aos rapazes?


A indignação:
Claro que sim, Tigy!

A opinião:
Eu acho que não.
Elas são tão fraquinhas...

24 janeiro 2011

Por acaso

consigo distinguir bem as fronteiras entre o "fazer bem" e o "fazer mal", entre o "agir" e o "reagir", entre o "anda cá" ou o "deixa estar".

Por acaso acho que é um dos poucos talentos que tenho.
E, dentro de acasos destes, não me parece nada por acaso.

22 janeiro 2011

A guardar



"Changed everything.
Because suddenly you have an individual in your life that is more important than you are."


in "Sanctuary: Lisa Gerrard A Portrait by Clive Collier" (2007)




Belo. Silencioso. Íntimo.

21 janeiro 2011

Uma escolha e uma história #5

Uma comida



Às quartas-feiras as aulas acabavam à hora de almoço e era o meu avô quem me ía buscar, esperando no portão do colégio, dentro do carro, para depois nos levar aos dois até casa, seguindo por ruas alternativas, acenando a todos os velhotes de boina que encontrávamos no percurso e colocando sempre o carro em ponto-morto nas descidas, para poupar gasolina...
Era o melhor dia de toda a semana. Lembro-me que essas manhãs de escola passavam num ápice, havia até uma aula de Físico-Química no laboratório e, para além de ser a disciplina que menos gostei em toda a minha vida de estudante, aqueles frascos, tubos e experiências esquisitas (de que nunca tirei qualquer efeito) acabavam por ser o cenário das listas infinitas que rabiscava nos cadernos com todos os planos que tinha para uma tarde tão gigante, como eram as tardes de quarta-feira.

À chegada o almoço estava já pronto e era (quase) sempre aquele: frango estufado, com puré de batata e ervilhas. Eu, que tinha fama de comer mal e pouco, deliciava-me com aquele prato, acompanhado com pão com muito miolo e 7up. Em casa dos meus avós havia sempre sobremesas às refeições - arroz-doce, aletria, pudins - e havia sempre pressa, porque a mercearia deles estava aberta, sem horário de descanso ou pausa para refeições. A minha avó passava a maior parte do tempo à porta da sala, vigiando a loja e recolhendo os pratos quando ainda mal tínhamos pousado os talheres.

Escapava-me para casa, no piso superior, logo que o almoço acabava e por lá, sozinha, perdia a tarde entre as minhas brincadeiras e os meus vícios, com o computador, a televisão, os livros e os diários. Quando escurecia não tinha feito nada do que guardava para as tardes de quarta-feira e voltava a listar pensamentos cheios de projectos para a semana seguinte, quando tocasse e a aula de Físico-Química no laboratório acabasse, o meu avó me esperasse no portão, viéssemos em ponto-morto nas descidas até casa e eu comesse o prato cheio de frango estufado, com puré de batata e ervilhas.

Em sextas-feiras como a de hoje - com a perspectiva de um fim-de-semana gigante à frente, cheio de tempo para mim, para as minhas coisas e para os meus vícios, que continuam a ser os mesmos - lembro sempre daquelas quartas-feiras, quando no carro, entre o trabalho e a minha casa, listo mentalmente todos os projectos que guardo para estes dias. Quando escurecer no domingo, grande parte voltarão a ser apenas isso mesmo, projectos, e entre eles ficará aprender a cozinhar frango estufado, com puré de batata e ervilhas com o sabor tal qual o que a minha avó fazia.

19 janeiro 2011

"Se cair, do chão não passa"



Abria muito os olhos sempre que tinha vontade de chorar. Para não o fazer. E conseguia: fechava os dedos com força e trincava os lábios, até as unhas fazerem feridas na pele das mãos dobradas em concha e sentir o sangue na língua. Eva sabia que não tinha sido feita para sofrimentos vãos ou esperanças inúteis, para esperas ingratas ou injustiças tamanhas. Eva seguia em frente. Eva lutava com o tempo quando ele lhe roubava pessoas, uma ou outra história, um ou outro segredo. Estava habituada a ganhar. E ganhava mesmo. Definitivamente. Mesmo quando havia lágrimas nos olhos ou frio nos braços ou lhe falhavam as pernas ao subir ruas ou ao subir escadas ou ao subir do chão para a cama ou da cama para lado nenhum.
Os dias eram feitos disso: da água que não chegava a escorregar pela cara, das feridas nas mãos que não chegavam a sarar, do sangue na língua cujo sabor não cessava.

Como uma dor pequenina que se expande lentamente, que se torna maior do que a força, maior do que os músculos das subidas ou que a teimosia da vontade. Contra os factos ou contra a inevitabilidade, chegou o dia em que os dedos se abriram e cada mão sentiu as feridas da outra. Contra a verdade ou contra o azar, chegou o dia em que os dentes não trincaram a pele e o sangue se viu a humedecer os lábios. Contra a vida ou contra todos, chegou o dia em que as pernas se vergaram, em que os joelhos se encostaram ao queixo, em que as subidas se fizeram de chão.

E quando os olhos se fecharam e, finalmente, sentiu a água num trajecto definido, ela soube que a partir dali tudo iria melhorar.

14 janeiro 2011

Saber de mim?

Estou numa linha de um livro

"Fechar os olhos não muda nada. As coisas não desaparecem pelo simples facto de não as estares a ver. Pelo contrário. Da próxima vez que abrires os olhos, revelar-se-ão ainda piores."

in Kafka à beira-mar (Haruki Murakami)

numa nota de uma música



numa cena de um filme




in The end of the affair (1999)

11 janeiro 2011

Uma carta para... #2

a minha paixão.

Tigy,
Quando não estás na nossa casa, há um sossego pesado e escuro que torna tudo estranho e incompleto. Aos poucos, especialmente ao longo destes últimos quatro meses, construímos uma rotina muito nossa, feita de uma cumplicidade que nunca antes tínhamos criado.
Dizem-me, de todos os lados, que "estás melhor", "mais crescido", "mais calmo" e "mais feliz". E estás mesmo. Estamos os dois e este viver a par que inventámos juntos. Dizem, ainda, que é muito mérito meu e, pela primeira vez na vida, eu concordo. Eu sei que é mesmo verdade. Eu sei que te tenho feito um menino feliz e que tu, finalmente, me fazes sentir mãe. Uma verdadeira mãe. Mesmo que, tantas vezes, até pareça que tu é que tomas conta de mim e não o contrário.
Todos os dias, no caminho entre a escola e a nossa casa, fazemos o "plano", como assim chamamos ao encadeamento de lanche - banho - pijama - jantar - brincar - histórias - cama, com uma ou outra novidade conforme os dias. Falamos ainda do que fica para os fins-de-semana, do que há para comprar no supermercado, do que temos de arrumar em casa e dos sítios a ir em dias próximos. E nunca te esqueces de nada do que falamos.
Contas-me coisas da escola e perguntas coisas da "minha", querendo saber se há cromos novos na caderneta da bola enquanto escondes no bolso um ou outro que trocaste com os amigos e que "Ainda não temos, mãe".
Às vezes perguntas o que eu almocei e insistes que é dia de ginástica: "Vai mãe, é só um bocadinho...".
Comprámos uma toalha nova para os nossos jantares, feita do tamanho do canto da mesa que ocupamos os dois, frente a frente, e as vaquinhas desenhadas no tecido estão estrategicamente a olhar ora para mim, ora para ti, enquanto comemos e falamos, enquanto te vigio e enquanto me dizes, quase todos os dias, "Está delicioso, mãe".
És a melhor das companhias para lanchar. Pedes sempre o mesmo na pastelaria: um café e um pão com farinha, zangando-te quando eu traduzo, para o outro lado do balcão, que é um garoto e um pão sem nada ("Não é sem nada, mãe, é com farinha!").
Falas muito antes de adormecer quando dormimos juntos, perguntas e mais perguntas, e jogamos jogos feitos à medida das minhas insónias e da tua energia. Jogos com regras complexas, que só nós entendemos, e que tu, invariavelmente, ganhas. Normalmente acaba tudo em gargalhadas e em maratonas de cócegas que eu não sei controlar e tu não sabes resistir. Ouvir-te rir, mas rir muito, com todo o tamanho da vontade, faz-me rir também, dessa forma descontrolada que baralha os lençóis da cama e mistura as almofadas.
Aprendemos a dividir o comando da televisão, o espaço do sofá e as prateleiras da estante: entre as minhas coisas e as tuas, entre os meus programas e os teus, entre a minha necessidade de silêncio e a tua sede de atenção. Fazemos acordos e apertamos a mão, combinamos horas e intercalamos cedências, repetimos verdades ("Tigy sabes uma coisa?", pergunto eu, "Ah já sei que vais dizer que me adoras...") e somos surpreendidos por declarações sérias: "Mãe, eu amo-te".
És cada dia mais responsável, mais entregue, mais simpático, mais generoso, mais sensível, mais obediente, mais compreensivo e mais perspicaz: "Mãe tens o nariz vermelho..." e eu respondo "A mãe está constipada...",  "Mãe não mintas, constipado é quando fazemos atchim...".
E nem vale a pena esconder mais nada. Apenas abraçar-te e saber que o mundo inteiro está ali a respirar contigo e que só isso importa.


A falta que me fazes quando não estás é proporcional ao bem que te faz o de vez em quando me deixares, o de vez em quando não ter de inventar histórias por ter o nariz vermelho... como agora.


Da tua
Mãe

09 janeiro 2011

"Se sabes o que eu sei, cala-te que eu me calarei"


No dia em que ele lhe contou toda a verdade, Eva jurou que nunca mais iria falar. Simplesmente perdeu as palavras ou prendeu-as mais fundo do que a garganta, mais longe que o coração. Entre o estômago e a razão. Achou ela que ele faria o mesmo. Por muito que falasse, por muito que continuasse a percorrer as mesmas ruas onde passaram abraçados e a rir das mesmas piadas ditas agora a terceiras pessoas.
Havia um espaço reservado onde o mundo não conseguiria entrar. Onde ela, dominando a mente numa luta feroz, também não mais entraria. Vivendo e permanecendo como parte do seu silêncio. De todo e qualquer silêncio. Guardando para si, e escondendo de todos, o que ficava, agora, para trás, como resto de passado ou traço da imaginação. Dali para a frente, ela viveria fechada numa repetição magoada de dias velhos e gastos de tanto os usar, de tanto os repetir substituindo os dias novos que preferia nunca mais ter.
Aquele era o pacto dela com ele. Aquele era o silêncio dela em troca da verdade dele. Aquele era o futuro dela como paga pelo passado com ele.

Como se valesse a pena, como se compensasse tudo. Mesmo as palavras por dizer. Mesmo o silêncio a arranhar a garganta e a pesar nas costas como se fosse um destino.

Encostada ao corrimão da escada, entre os primeiro degraus estreitos e desnivelados depois da porta, Eva escutava conversas alheias, feitas de paredes surdas e demasiado finas para tamanha crueldade. Aquele era o momento depois da despedida, um tempo de tranquilidade depois de batalhas perdidas. E antes de se calar para sempre ela avisou-o...








Nota - 2011 traz ditados e provérbios populares até aqui. Sempre adorei essas frases vindas de todos os pontos do país e do mundo, que com palavras simples ou grandes trocadilhos conseguem dizer, muitas vezes, as mais duras das verdades. E, nestes casos, até as contradições têm encanto. A partir dessas heranças da sabedoria popular surgirão as minhas histórias. Narrativas da imaginação. Ou talvez não.

07 janeiro 2011

Olha

se um dia eu acordar e tudo o que
ouvir
souber
pensar
adivinhar
pressentir
e vir, com os meus olhos,
deixar de entrar na minha pele, como agora,
e não mais transformar os meus dias maus em dias péssimos,
lembrarei o sabor da felicidade,
apenas por experimentar tal indiferença.

06 janeiro 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #8

A reacção:
Olha Tigy,
a Fada dos Dentes deixou uma moeda debaixo da tua almofada!


A questão:
Mãe,
tens a certeza que não foste tu?

05 janeiro 2011

2/3 do meu cérebro são letras de canções





"há dias assim dias de alma vaga tão perto de Deus tão longe de mim sem horas boas nem más sem horas sequer apenas vazio na alma apenas dias assim"

03 janeiro 2011

Gosto Não Gosto

Gosto de gente coerente.
Não gosto de gente que nunca se lembra de nada e usa isso como desculpa para tudo, como se a memória fraca fosse uma qualidade em vez de um irritante defeito.

01 janeiro 2011

Foi então

que o ano começou.
E quando escureceu percebi que:
1 - está tudo exactamente na mesma
2 - tenho 364 dias para mudar isso.