23 janeiro 2006

A culpa e as desculpas



Há um silêncio na casa que a televisão, a música, a máquina que lava a roupa e os carros que passam na rua, mesmo juntos, não conseguem romper. É um silêncio de solidão, um silêncio de ausência.
Os brinquedos espalhados pelo chão, as mantas de lã dobradas, a cadeira vazia, são marcas de uma saudade, que se reflecte até na inércia dos meus braços e na leveza do meu colo.
Acima de qualquer outro sentimento, hoje fiquei com a culpa. É ela que me segreda o quão é injusto não o ter aqui, o quanto é penoso não saber que pensará ele desta distância, feita da minha ausência. Fixada nas horas, remoendo justificações e obrigações, fico eu neste vazio de um dia tão comprido e frio.

Entre a porta da creche e o carro, seguro-o com força nos meus braços e digo-lhe, muitas vezes, ao ouvido: "Desculpa". Mas que desculpas são estas que se repetem, que não se evitam e que, especialmente hoje, apenas carregam a minha tristeza?

18 janeiro 2006

Hoje falo de mim


Gosto de gostar e gosto de quem gosta de mim. Não gosto de fazer de conta, de parecer bem e não gosto ainda de mostrar que gosto do que não gosto. Gosto mesmo é de repetir que “não gosto de fazer fretes”.

Gosto de livros, de cadernos, de revistas e até de folhas em branco. Gosto de escrever, de acreditar que ainda sei como fazê-lo. Não gosto de conversas inacabadas, de histórias redondas, de frases cortadas por silêncios de receio. Gosto de criticar. Não gosto que me digam que estou sempre a criticar.

Gosto de coisas simples: de bolachas molhadas em café, de bolo de chocolate recheado com chocolate e coberto de chocolate. Gosto de arroz com atum, de coca-cola (muito, muito) e de refeições no sofá em frente à televisão. Tenho pena de não gostar de leite, de receitas inovadoras e de gastronomia elaborada. Mas, no fundo, não tenho pena nenhuma.

Não gosto de pessoas invejosas e muito menos das que vivem ao ritmo das vidas dos outros. Gosto de pessoas cheias de histórias, de ideias, de talentos, de mistérios. Não gosto é de quem diz gostar de toda a gente. Não gosto de perder as minhas pessoas. Gosto da minha família. Gosto dos meus cães. Mas não gosto da distância, dos quilómetros. Não. Não gosto mesmo.

Gosto de estar em casa. De ficar em casa. De permanecer em casa. Não gosto de limpar a casa. De arrumar a casa. Mas do que eu não gosto mesmo é da casa suja, é da casa desarrumada. Gosto de andar de carro. Gosto quando a rádio dá uma música diferente. Não gosto de filas, de estacionar longe, de pôr gasolina.

Gosto de música com palavras. Mas palavras cheias de sentido. Não gosto de grande parte dos grupos e cantores que aqueles da minha idade gostam. Normalmente nem sei quem são. Gosto é da Mafalda Veiga e da Mariza; da Adriana Calcanhotto e da Marisa Monte. Gosto mais de música no feminino. Não sei é porquê.

Gosto de gente da televisão. Adoro actores, actrizes, realizadores, encenadores. Não gosto de lembrar que não sou um deles. Não gosto de maus actores, de maus textos, de maus finais. Mas gosto de palcos, de câmaras, de microfones. E gostava de um dia andar por aí.

Gosto daquelas coisas que todos gostam de dizer que não gostam: telenovelas, baladas do momento, centros comerciais. Gosto realmente é de dias de chuva, de tardes escuras à lareira, de manhãs na cama, de casacos e camisolas de gola alta. Gosto de lembrar quando gostava de ir à praia. E gosto de frisar: verão, areia, bikini e mar não me fazem falta nenhuma. Ou quase.

Não gosto de deixar tanto por dizer. Gosto de ter gostos. De duvidar deles. De os contrariar. De os ver mudar com a idade, com as surpresas dos dias, com a rotina, comigo. Não gosto de desgostos. Mas gosto de saber que foram os maiores desgostos da minha vida que me deram todo este gosto de viver.

Gosto de ser mãe.
E basta dizer isso para dizer quase tudo sobre mim.

12 janeiro 2006

O corredor


O corredor é longo e recto. Parece desenhado de propósito, para que a "Sala dos Bebés" fique no seu final e as mamãs, de coração apertado e garganta seca, possam testar os seus próprios limites: cada manhã conseguem ir mais além sem virar a cabeça para trás... cada dia está lá, mais ao longe, o bebé ao colo da educadora. Cada dia mais longe.

Cumprida quase uma semana de creche o Tigy, segundo uma das educadoras, tem fortes probabilidades de passar de ano. Eu, a mãe, confesso que fiquei feliz com tal prognóstico e, por instantes, até esqueci como tem sido estranho andar na rua, entrar nas lojas, conduzir, estacionar, sem a companhia dele.

Na noite anterior ao primeiro dia dormi pouco e mal. Sentia-me mais ansiosa do que triste, talvez mais curiosa do que medrosa... No meio das insónias, revivi as noites mal dormidas de quando era criança e, no dia a seguir, havia vacinas ou análises. Qual menina com medo da agulha, levei a tralha, o marido, o bebé e aquelas duas primeiras horas do Tigy na creche foram compridas e insossas. À medida que se sucedem os dias, sinto o tempo a voltar ao ritmo certo, a ameaçar travar nos cinco minutos que me separam de casa à creche e a saltar incontroladamente quando voltamos, os dois, para a nossa sala, para as nossas coisas, para o nosso Refúgio de Felicidade.

Sim. Tem corrido bem. Ele come a sopa toda. Não tem ficado a gritar. Não o tenho encontrado a chorar. Sim. Tem corrido bem. Vem com a fralda lavada. Vejo-o receber beijinhos. A sala está quente. As pessoas são simpáticas. Sim. É verdade. Tem corrido mesmo bem. Mas trocava este "bem" por mais uns dias da vida que tínhamos.

05 janeiro 2006

Sobra amanhã


Amanhã é o nosso último dia juntos, a sós. O último da nossa rotina destes meses, desde que nos conhecemos. Uma rotina que contruímos à escala do nosso conhecimento, ao pulsar do teu crescimento, à medida das minhas próprias rotinas. Amanhã termina um ciclo que teve tanto de bonito como de feliz e é por isso que custa encerrá-lo.
Não quero descrever de que banalidades terei saudades... do nosso acordar a partilhar a cama, dos meus almoços de queijo, banana e goibada e das cólicas que tiveste depois, da ginástica que fazes com os braços e as pernas mesmo quando estás prestes a adormecer, dos primeiros sorrisos, das actuais gargalhadas, da chegada do carteiro, das idas ao supermercado, à lavandaria, à farmácia, aos correios, da hora dos Morangos com Açúcar e das danças ao colo ao som dos DZRT, da chegada do pai... não. Não quero lembrar. Terei muito tempo para isso. Na próxima semana. Na seguinte. Nas outras todas também.
Sei que estes foram dos meses mais bem passados que tive, quem sabe que terei... Sei que ter-te, trazer-te, descobrir-te, tem sido uma experiência saboreada e intensa. Sei que dentro dos nossos dias um pouco iguais existiram sempre momentos singulares, feito do inesperado da tua presença. Sei que nada mudará no que sinto por ti, sei que nada mudará no que sentes por mim... Só não sei como é que te vou deixar lá sem ficar também...