Rendida ao Desfado
de Ana Moura
Sei muito bem o dia em que comecei a gostar de fado. Era verão e choveu. Ia de carro em trabalho, algures numa estrada de curvas e a música começou na rádio e encheu-se de sentidos. Dias a fio não a deixei, no pensamento. Guardando apenas as frases que a memória reteve. Qualquer coisa como
" a chuva ouviu e calou meu segredo à cidade".
Alguns dias depois, parei na primeira loja que encontrei no percurso trabalho-casa, ao final da tarde, e comprei o álbum. Aquele resto de dia, de calor abrasador e sem pingo de chuva na rua, passei-o deitada na cama a ouvir a faixa 3 do álbum "Fado em mim", de Mariza.
Decorei a letra entre
"as coisas vulgares que há na vida não deixam saudades"
e
"eis que ela bate no vidro trazendo a saudade",
mas demorei vários dias até deixar o disco correr do princípio até ao fim.
O fado para mim estava em cassetes com o rosto de Amália Rodrigues que o meu avô materno tinha no carro e que nós odiávamos ouvir durante os passeios de domingo.
O fado para mim começava ali. Naquele álbum, naquela voz, naquele
"fogo do amor sobre a chuva que há instantes morrera".
O fado a partir dali tornava-se um "fado em mim", para deixar que
"as lembranças que doem ou fazem sorrir"
tivessem uma banda sonora muito própria.
Daí para a frente, o fado multiplicou-se comigo. Foram chegando as vozes, foram-se desvendando os álbuns, foram aumentando as dores projetadas num sofrimento alheio, da viola ou da guitarra, do fadista ou do compositor.
Ouvido nos piores momentos o fado é coisa que magoa, que intensifica o mal que se rumina, que afunda o silêncio numa solidão demasiado negra. Nos meus dias de agora, voltar ao fado é desconstruí-lo. É roubar-lhe a dor, arrancar-lhe o xaile, guardar-lhe os receios e as dúvidas, esconder-lhe as mágoas e calar-lhe a fatalidade. É quase acender uma vela e iluminar-lhe o negro. É quase limpar-lhe o rosto e abrir-lhe os olhos. É quase ver nascer, ver crescer, um novo fado em mim.
Ilustração - Jessica Grundy
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