« - Há dez anos, parti um copo e, quando andava a limpar, enfiou-se-me um estilhaço no polegar. Não o consegui tirar e, por causa dos nervos dessa zona, o médico não lhe quis mexer. Ao longo dos anos, de vez em quando doía, mas nada de especial; e o coropo foi-se sempre protegendo daquele vidro. Formou camadas de pele à volta dele até ficar como uma ervilha. Finalmente, um dia, o corpo rejeitou-o. A ervilha veio à superfície e, com a ajuda de sulfato de magnésio, saltou do meu polegar.
- E é essa a sua explicação para o tipo de realidade que estávamos a falar?
- Os estilhaços de vidro podem entrar no espírito, também - disse, e só a ideia bastou para o deixar nauseado. - Algumas vezes são demasiado dolorosos para serem enfrentados. Empurramo-los para as profundezas da mente. Pensamos que podemos esquecê-los. A nossa mente protege-se deles, embrulhando-os em camadas... ou seja, mentiras. E assim, distanciamo-nos do estilhaço. Até que um dia acontece qualquer coisa e, sem razão especial, vem à superfície da consciência. A diferença entre o mental e o físico está em que não podemos aplicar sulfato de magnésio para trazer o estilhaço do espírito ao consciente.
Ele levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro da sala. Esses pequenos estilhaços de vidro a virem à superfície despertaram um pequeno terror. Era como se conseguisse senti-los na cabeça, que estalava como... como um campo de gelo. Seria outra analogia física?
- Está assustado, o que é normal. Nada disto é fácil. Exige uma grande coragem. Mas é altamente compensador. A recompensa acabará por ser uma verdadeira paz de espírito e o reinício de todas as possibilidades. »
in Cego de Sevilha, Robert Wilson, página 249
Verdadeiro. Sensato. Sentido.
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