08 setembro 2012

30 dias de setembro #8


Dia 08 - Uma memória que me marcou para sempre


Naquela hora de almoço, entre as aulas da manhã e as da tarde, eu procurava no recreio a amiga de sempre, a companheira de todos os intervalos de há vários anos. Era ali que nos encontrávamos, entre as aulas da turma dela e as aulas da minha turma. Era ali, naquele espaço de tempo que dividia o dia, que comparávamos as matérias que calhavam para os testes, o avançar das páginas dos manuais escolares, as notas que conseguíamos. Entre o almoço e o toque de entrada trocávamos histórias que aconteciam nas nossas salas com as colegas de cada uma. As diferenças e semelhanças entre eu e ela, entre a minha manhã e a manhã dela, entre a turma A e a turma B, entre os testes de uma e as notas de outra, ganhavam ali todo o contexto, todo o sentido. Aquela era a nossa realidade. A partilha a par e passo de duas vidas paralelas, a minha e a dela, que aconteciam em simultâneo em salas do mesmo corredor, com a porta lado a lado e igual paisagem para lá das janelas.

E então, naquela hora de almoço eu procurava-a. Íamos, como sempre, preencher o tempo com a nossa rotina, tinha novidades para lhe contar... bem, não eram bem novidades, eram as nossas coisas:  alguém que respondeu ao professor de forma torta, alguém que tropeçou ao entrar na sala, uma piada dita entre dentes na última aula da manhã... E tudo isso, que era o de sempre, tinha de ser contado já, partilhado, repartido, entregue ao destinatário. Como se não fizesse sentido ter acontecido se não fosse contado a ela. Mas já. Cumprindo o esquema diário. Fazendo o de sempre como se fosse unicamente o melhor de hoje.

E eu procurava-a. 
Enquanto na minha cabeça o relato se repetia, como se tentasse memorizar, palavra por palavra, o que lhe queria contar. Como se não pudesse ser dito de outra forma, com outras frases. Como se uns minutos deixassem escapar, da minha cabeça, algum detalhe importantíssimo ou até os factos completos.

Foi então que a vi. No meio do recreio. Rodeada de gente da turma dela, que não era a minha, a falarem em coro com uma professora dela que não era minha. Trocavam argumentos e dúvidas sobre um trabalho dela, que não era meu, cuja data de entrega era tão curta, e nem era igual à minha. 

Dissipando-se o grupo. Afastando-se a professora. Resolvido o caso sem solução. Ela foi-se aproximando de mim, nos limites do grupo. Vinha contar-me o que se tinha passado. Começou a explicar... Mas eu travei-lhe o discurso: tinha andado à procura dela, aquela era a hora de almoço - o nosso tempo, já não dava para dizermos uma à outra tudo o que se guardava para aquele recreio. Ela tinha falhado e eu estava ofendida.

Passavam apenas uns 15 minutos daquela hora de almoço e eu não quis ouvir mais nada, não quis saber o que de tão importante motivara tal assalto à professora em pleno recreio. Eu não queria ouvir. Eu apenas queria mostrar a minha indignação pela falha da exclusividade, por a minha amiga - que era minha - ter roubado 15 minutos à nossa amizade por qualquer outro motivo de maior importância na vida dela, na turma dela, tudo coisas dela que não eram minhas.

Aquela hora de almoço foi há mais de 20 anos e lembro-a muitas vezes, como os quinze minutos que valeram a hora toda, como o episódio em que para mim nada nem ninguém valeria 15 minutos que eram meus, ignorando por completo a fronteira entre o que é a minha vida e o que é a vida do outro sem mim.
Lembro, aquela hora de almoço, à laia de lição para não diluir a minha vida na vida de ninguém, mas acima de tudo, para não esquecer que os outros não deixam de ser meus e de ser amigos por precisarem de 15 minutos deles... que não são meus.




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