19 janeiro 2011

"Se cair, do chão não passa"



Abria muito os olhos sempre que tinha vontade de chorar. Para não o fazer. E conseguia: fechava os dedos com força e trincava os lábios, até as unhas fazerem feridas na pele das mãos dobradas em concha e sentir o sangue na língua. Eva sabia que não tinha sido feita para sofrimentos vãos ou esperanças inúteis, para esperas ingratas ou injustiças tamanhas. Eva seguia em frente. Eva lutava com o tempo quando ele lhe roubava pessoas, uma ou outra história, um ou outro segredo. Estava habituada a ganhar. E ganhava mesmo. Definitivamente. Mesmo quando havia lágrimas nos olhos ou frio nos braços ou lhe falhavam as pernas ao subir ruas ou ao subir escadas ou ao subir do chão para a cama ou da cama para lado nenhum.
Os dias eram feitos disso: da água que não chegava a escorregar pela cara, das feridas nas mãos que não chegavam a sarar, do sangue na língua cujo sabor não cessava.

Como uma dor pequenina que se expande lentamente, que se torna maior do que a força, maior do que os músculos das subidas ou que a teimosia da vontade. Contra os factos ou contra a inevitabilidade, chegou o dia em que os dedos se abriram e cada mão sentiu as feridas da outra. Contra a verdade ou contra o azar, chegou o dia em que os dentes não trincaram a pele e o sangue se viu a humedecer os lábios. Contra a vida ou contra todos, chegou o dia em que as pernas se vergaram, em que os joelhos se encostaram ao queixo, em que as subidas se fizeram de chão.

E quando os olhos se fecharam e, finalmente, sentiu a água num trajecto definido, ela soube que a partir dali tudo iria melhorar.

1 comentário:

Anónimo disse...

... e no meio da intempérie eis que o sol volta a brilhar no horizonte de onde nunca se deveria ter ocultado :)
Pedro