07 abril 2006

Relances


I
Foi num relance que a vi. Assim, num acaso, no meio de um corredor de hipermercado, entre o gel de banho e o champô de camomila. Passaram tantos anos e conheci logo a sua silhueta esguia e o tom do cabelo. No momento que se seguiu à despedida, recordei aquele primeiro dia da primeira classe. A professora grávida, os rostos conhecidos da infantil e ela: a menina nova, de pasta rígida amarela, pela mão, a combinar com o cabelo. E foi ela o centro de todas as atenções. Pelo menos vejo-o, assim, agora. Passados vinte anos. Sim. Vinte anos. O que para nós ainda é uma vida inteira. Para mim, ela é ainda a menina da pasta amarela, a minha colega de carteira durante anos lectivos a fio, quem vi casar no intervalo grande da manhã com um dos poucos rapazes da turma, a mesma que eu detestava que adoecesse porque ficava sem os lápis de cor giotto com que eu adorava pintar. Deixamo-nos já jovens mulherzinhas, prontas para a faculdade. Ainda nos fomos cruzando nas viagens entre casa e Lisboa, e as conversas faziam-se sempre de recordações. Agora, no encontro por acaso, fica aquela sensação de que já se passaram tantas coisas e mudaram outras tantas. Mas quando se reencontram as pessoas da infância elas nunca nos vêem grávidas ou com filhos dentro de um carrinho, talvez nem sequer nos vissem casadas, nas compras mensais para o lar. Aos olhos delas, ainda arrastamos a pasta pelo corredor da escola e ainda brincamos no recreio ao mata e à macaca.

A ti, amiga de sempre, te digo: podem passar muitos anos, viverem-se muitas coisas, alterarem-se padrões do quotidiano e até formas de ser e pensar. Mas tudo o que vivemos e fomos, uma para a outra, em tempos tão bonitos, perdura, perdura, perdura. E é capaz de mexer cá dentro e revolucionar o refúgio dos sentimentos.

II
Foi num relance que me encontrei. A mim. Mamã ainda estagiária, prestes a desabar. Cansada. Talvez atada ou confundida. Os meus dias sucedem-se, nunca faço nada do que quero, nem faço o que faço da forma como queria. Vivo assim entre tarefas por cumprir e um sufoco por me faltar tempo ou capacidade para o conseguir usar, gerir, esticar. Envolvida nesta insistência em ser perfeita e ficar muito aquém de qualquer objectivo...

III
Foi num relance que me emocionei. Com o texto que li: palavras de um pai, plenas de sinceridade e de verdade. Nada melhor do que deixar um texto tão perfeito, escrito por outras mãos, quando as nossas não chegam para todas as ideias, para todas as exigências.

9 comentários:

RB disse...

fico sempre tão feliz, quando aqui venho e vejo que escreveste novamente.
As tuas palavras enchem o meu dia, se é dia de te ler.
escreve mais, pois assim o meu dia fica muito mais cheio de ti.
Obrigada pelas palavras.

BlueAngel aka LN disse...

Já tinha saudades de te ler. Entendo-te perfeitamente em tudo o que dizes e apesar de não ser nem casada e nem mãe há outros aspectos da minha vida que me fazem olha com algum "relance" para o que se passou e passa. Quanto ao texto que te emocionou, quando o li aconteceu-me o mesmo.

Anónimo disse...

Finalmente mais um post da Beguinha... Também já tinha saudades dos teus relatos de mamã, de mulher, de esposa, de filha e de amiga.
Mts bjs amigos
Cátia

PS- No dia 30 lá estaremos

O Mafarrico disse...

A vida é feita de coisas boas e coisas más. Nela temos de encontrar o nosso equilíbrio. Tenho a certeza de que nela és tão boa mamã e esposa, quanto és escritora e profissional. O sentimento que tens de ficar aquém do que esperas é comum e normal em qualquer um de nós, que também vivemos, esperamos e desesperamos, nos alegramos e entristecemos. Obrigada pela prosa. Até breve!

CLS disse...

Porquê essa exigência de ser perfeita, se isso traz tanta frustração?! (pergunta para ti e para mim, tb padeço desse "mal").
Beijos

Anónimo disse...

É num relance que vivemos,
orfãos do tempo que passa,
às vezes deixa rasto,
Para nos lembrarmos dos outros e de nós.
Gosto de te ler.
Um beijinho.

sombra_arredia disse...

..Agora ao ler este texto delicioso lembrei-me de 1 coisa que me aconteceu faz pouco tempo: consegui descobrir c/ a ajuda de 1 amigo o paradeiro de uma amiga /colega do tempo do Secundário,"desaparecida" há já longos anos..
...E foi tão boa a surpresa de uma manhã ela me telefonar,e de reviver os nossos tempos,e de saber que a amizade não se diluíu e...

Ana disse...

imagina abrires a porta do teu emprego e encontrares do outro lado o teu 1º namorado. Aquele com quem tu viveste as primeiras histórias. De repente ficas de novo menina e regressas à infancia. Estes encontros são mesmo muito especiais....

Horas Vagas disse...

É, sem dúvida, um texto lindo de um pai maravilhoso...
Como são os teus!
É bom voltar.