05 novembro 2013

20 coisas que eu quero que o meu filho
saiba até ao Natal até ao final do ano sempre

#17


O meu avô Júlio fez 90 anos. É o único avô que tenho, apesar de às vezes me parecer que ainda ontem tinha os 4. Tenho um pensamento muito presente, muito recente, de conversar na escola com as amigas e dizer, orgulhosamente, que tinha os 4 avós comigo. Devia ter perto de 10 anos, porque foi nessa idade que perdi o meu avô Manuel, pai da minha mãe, de quem guardo memórias muito intensas mas tão triviais.
O meu avô Manuel era pescador e caçador, um homem alto e rigoroso, que não admitia conversas durante a hora do telejornal, que era sagrada. Uma vez o meu avô preparava as canas, linhas e anzóis para mais uma manhã de pesca e não sei como – a minha memória não chega a esse detalhe – um anzol prendeu-se no meu dedo. Às vezes olho para o meu indicador direito e quase juro que vejo lá uma pintinha, a marca desse momento, apesar de já nem saber, na verdade, qual foi o dedo acidentado.
O meu avô tinha muitos cães de caça que soltava ao domingo, já de espingarda no ombro. Os cães do meu avô tinham nomes que eram números, mais precisamente do dia em que tinham nascido ou chegado lá a casa. Havia o 31, o 13... O meu avô morreu muito novo, numa doença tão rápida, que entre aparecer e desaparecer, pareceu um instante, como se ninguém tivesse tido tempo sequer de reagir.

Lembro muito bem da última vez que o vi, no hospital, extremamente magro e debilitado. Lembro de não querer ver, como se soubesse, nos meus 10 anos, que aqueles minutos me iriam marcar para sempre. Como se pedisse à minha memória para não guardar aquela imagem, como se fosse possível substituí-la por outra imagem qualquer, por aquela do anzol preso no meu dedo, por exemplo. Ou pelos passeios de domingo à tarde: os quatro netos no carro do avô e o avô a acelerar nas lombas para dar aquela impressão esquisita no estômago que todos adorávamos. Ou quando o avô dizia que o piquenique para o passeio ia dentro do bolso. Ou quando fomos almoçar fora e todos recebemos os pratos pedidos e a comida do avô nunca chegou a aparecer. Ou quando era inverno e, na hora de deitar, o avô dobrava três ou quatro cobertores muito grossos e nos tapava com eles, quase nos sufocando de tanto peso e tanto calor. Ou mesmo quando o avô ralhava connosco e mostrava o cinto das calças numa tentativa frustrada de ser ameaçador.
Ou, então, substituir aquela imagem pela do baloiço que o avô uma vez fez no pátio, com uma tábua de madeira e duas cordas. Ou pelo cheiro das sopas de leite com pão que o avô jantava muitas vezes. Ou pelos passeios de cicloturismo lá da terra em que o avô ia sempre na sua bicicleta de corrida. Ou pelo som da sua voz que ainda reconheço. Ou, até, pelo carro de capota de plástico que o avô comprou para passear com os netos e fez com ele tão poucos quilómetros... Ou, ainda melhor, pelas notas de 100 escudos azuis com o Bocage a que eu chamava “o homem do telefone” por me parecer que a sua mão, a segurar a cabeça, era de quem falava ao telefone. Notas que não trocava por nenhuma outra que o avô me oferecesse, com o dobro ou o triplo do valor.
Ou trocar aquela imagem por uma outra qualquer, de um qualquer dia, tempo, momento, verdadeiro ou deturpado pela memória, toda e qualquer coisa, menos aquela, do avô no hospital, tão magro, tão fraco, tão pouco o meu avô. Todas as memórias em vez daquela do avô a morrer.

Ontem telefonei ao meu avô Júlio, a dar os parabéns pelos seus 90 anos. Quando desliguei o telemóvel, depois da breve conversa com ele, o Tiago perguntou “O Avô Júlio tem facebook?”. Eu soltei, de imediato, uma gargalhada e o meu filho explicou: “Era para eu lhe dar os parabéns...”.

O meu Avô Júlio, com os seus 90 anos, tem telemóvel, sport tv, ainda conduz de quando em vez, vive sozinho, lê o jornal de notícias todos os dias, tem a caligrafia mais bonita que alguma vez vi e nunca se esquece de dar os parabéns à família, mesmo que este ano até me tenha telefonado um dia antes do meu aniversário. O meu avô tem 90 anos e uma vida cheia de trabalho, mas também de viagens, de vitórias do seu/nosso clube do coração, de histórias e de amigos. E não, não tem facebook. Talvez para o ano o Tiago já lhe escreva os Parabéns no mural, entretanto o que eu quero que o Tiago saiba é que:




* Os netos são a ligação dos avós com o futuro. Os avós são a ligação dos netos com o passado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Só tu para me fazeres chorar e recordar momentos que estão bem guardadinhos no meu coração ferido pela perda dum homem tão importante na minha vida..... o meu pai.
Your mother.