21 fevereiro 2013

Coisas da gripe




Quando era criança e ficava doente era uma semana inteira no quarto, com cheiro a pijama, a cobertores, a xarope e a calor de cama sem ser feita nem refeita.
A minha Mãe fazia-me engolir os comprimidos esmigalhados em leite bem quente, adoçado com mel, e tirava-me a febre antes de sair para ir dar aulas.
Naquelas semanas eu ficava sozinha, fechada no quarto, embrulhada na cama, com a televisão e um ou outro livro. A mercearia dos meus avós ficava por baixo da casa onde vivíamos e, perto da hora de almoço, subiam a escada com o tabuleiro com um prato cheio para eu recusar.

Se há coisa que nunca esquecerei desse tempo era dos programas de culinária e foi nesses períodos que apanhei uma embirração especial à Filipa Vacondeus que, todos os dias, tinha restos de arroz, restos de carne ou restos de peixe, para fazer uma qualquer receita.

Aquelas semanas de gripe eram uma pausa do mundo.
Longe da escola, das colegas, ouvindo o barulho dos camiões na estrada mesmo do outro lado da janela, sem os ver. Cada dia que passava o corpo se tornava mais pesado, mais disforme e o cheiro do estar doente empestava o quarto inteiro.
Imaginava muitas vezes o mundo a mover-se, lá fora: a professora a escrever no quadro sem eu estar, as colegas de dedo no ar sem eu estar, os trabalhos de casa marcados sem eu os fazer, o recreio, barulhento e repleto, mesmo sem mim. Imaginava os almoços no refeitório e a mesa onde me costumava sentar e imaginava o trajeto de volta a casa, os carros para um lado e para o outro, e eu sentada no banco de trás.

Eu sabia que lá fora estava tudo exatamente igual sem mim: as pessoas a viverem as suas vidas, a minha Mãe a dar aulas, o meu Pai a dar aulas, a minha irmã a ter aulas, a mercearia dos meus avós cheia de gente, as colegas ora na sala ora no recreio, ora a chegarem à escola ora a irem para casa, e eu deitada na cama, a ver a Filipa Vacondeus cozinhar só com restos.

Passada a gripe, despido o pijama e tomado o primeiro banho, voltar à escola era encontrar tudo nos seus lugares. O mundo inteiro a andar para a frente. As pessoas nas suas próprias vidas. E eu apressava-me a acompanhar-lhes os passos, como se nem tivesse estado ausente, a fazer os trabalhos em atraso, a saber quantas páginas dos livros avançaram e a mudar de mesa no refeitório caso o meu lugar tivesse sido ocupado. Nada tinha deixado de acontecer por eu não estar. E tudo o que eu não tivesse visto, ouvido ou aprendido, não era comigo.

Esta semana o Tiago adoeceu.
Uma gripe.
Nestes dias em casa, os dois com cheiro a pijama, a cobertores, a xarope e a sofá sem ser feito nem refeito, respondi-lhe muitas vezes a perguntas do género: "Mãe se eu estivesse agora na escola o que é que eu estava a fazer?".
Não posso deixar de imaginar que ele, entre o Disney Channel e o Canal Panda, entre a PSP e uma sesta, entre uma bolacha e uma ida à casa de banho, sabe que lá fora está tudo exatamente igual sem ele: o mundo inteiro a andar para a frente, as pessoas a viverem as suas vidas, os amigos ora na sala, ora no recreio, os carros de um lado para o outro, o Pai a trabalhar, a chuva a molhar a estrada.

Mas também não posso deixar de lembrar que, tal qual como quando era eu a criança e ficava doente, nada deixa de acontecer por eu não estar, por eu estar aqui... doente com ele, doente por ele, enquanto o mundo lá fora anda para a frente, enquanto as pessoas lá fora vivem as suas próprias vidas.



Ilustração

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