19 abril 2006

Vitórias conjuntas


Chegaram depois de mais de duas horas de viagem. As malas não estavam prontas, nem eu. O Tigy ia com os avós, para dois dias de ausência, a mais de 200 quilómetros de mim. O plano estava traçado há várias semanas: nas férias da Páscoa, com a creche fechada e os avós mais libertos, o bebé ia para lá. E foi mesmo.
Aquele momento do carro dos meus pais a afastar-se trouxe-me uma sensação completamente nova. Não sei se de medo, se de perda, se de arrependimento. Os meus pais - as pessoas a quem devo quase tudo, as pessoas em quem mais confio neste mundo - levavam com eles o meu bebé. Portanto, naquele instante, tornaram-se ladrões em fuga com o meu mais precioso bem.
Na sala, com o Beguinho ainda no trabalho, o ambiente estava sinistro e o silêncio doía. Mesmo. Naquele serão, o jantar perdeu o sabor e a programação televisiva o sentido. Abusou-se nos telefonemas e olhou-se pelo canto do olho para os lugares do Tigy – o parque, a cadeira, o cantinho do sofá, mais tarde a cama, a banheira, a casa inteira.

Na viagem sul-norte os papás saudosos tiveram de enfrentar trânsito, calor e a pressa da chegada. Comigo no banco da frente – como há tanto tempo não acontecia – vencemos os quilómetros ao som das canções dos nossos primeiros meses de namoro. Na noite anterior, qual casal solteiro e sem filhos, fomos ao cinema e jantámos uma sandes, numa noite semelhante a tantas do passado.
À chegada, escondido atrás da porta ao colo da avó, o Tigy revelou-se pasmado e o sorriso tímido trouxe, para o meu colo, o meu filho de volta.
Os dois dias com os avós deram-lhe muitos passeios, atenção exclusiva o dia inteiro e um apetite gigante, quase desmedido.

A primeira Páscoa do Tigy, a primeira ausência da minha vista e as grandes vitórias: já não mama, dorme tranquilamente na sua caminha e durante a noite inteira. Graças aos avós ou graças aos papás que o deixaram ir e souberam estar sem ele.

07 abril 2006

Relances


I
Foi num relance que a vi. Assim, num acaso, no meio de um corredor de hipermercado, entre o gel de banho e o champô de camomila. Passaram tantos anos e conheci logo a sua silhueta esguia e o tom do cabelo. No momento que se seguiu à despedida, recordei aquele primeiro dia da primeira classe. A professora grávida, os rostos conhecidos da infantil e ela: a menina nova, de pasta rígida amarela, pela mão, a combinar com o cabelo. E foi ela o centro de todas as atenções. Pelo menos vejo-o, assim, agora. Passados vinte anos. Sim. Vinte anos. O que para nós ainda é uma vida inteira. Para mim, ela é ainda a menina da pasta amarela, a minha colega de carteira durante anos lectivos a fio, quem vi casar no intervalo grande da manhã com um dos poucos rapazes da turma, a mesma que eu detestava que adoecesse porque ficava sem os lápis de cor giotto com que eu adorava pintar. Deixamo-nos já jovens mulherzinhas, prontas para a faculdade. Ainda nos fomos cruzando nas viagens entre casa e Lisboa, e as conversas faziam-se sempre de recordações. Agora, no encontro por acaso, fica aquela sensação de que já se passaram tantas coisas e mudaram outras tantas. Mas quando se reencontram as pessoas da infância elas nunca nos vêem grávidas ou com filhos dentro de um carrinho, talvez nem sequer nos vissem casadas, nas compras mensais para o lar. Aos olhos delas, ainda arrastamos a pasta pelo corredor da escola e ainda brincamos no recreio ao mata e à macaca.

A ti, amiga de sempre, te digo: podem passar muitos anos, viverem-se muitas coisas, alterarem-se padrões do quotidiano e até formas de ser e pensar. Mas tudo o que vivemos e fomos, uma para a outra, em tempos tão bonitos, perdura, perdura, perdura. E é capaz de mexer cá dentro e revolucionar o refúgio dos sentimentos.

II
Foi num relance que me encontrei. A mim. Mamã ainda estagiária, prestes a desabar. Cansada. Talvez atada ou confundida. Os meus dias sucedem-se, nunca faço nada do que quero, nem faço o que faço da forma como queria. Vivo assim entre tarefas por cumprir e um sufoco por me faltar tempo ou capacidade para o conseguir usar, gerir, esticar. Envolvida nesta insistência em ser perfeita e ficar muito aquém de qualquer objectivo...

III
Foi num relance que me emocionei. Com o texto que li: palavras de um pai, plenas de sinceridade e de verdade. Nada melhor do que deixar um texto tão perfeito, escrito por outras mãos, quando as nossas não chegam para todas as ideias, para todas as exigências.