20 março 2012

Coisas da primavera





As primeiras recordações felizes que tenho de Lisboa chegam-me da primavera. Destes cheiros mais aromáticos que transformam a cidade e da forma mais saltitante que vejo na pressa do movimento das pernas das pessoas que enchem ruas e outros lugares.
As minhas primeiras primaveras por aqui fizeram-se de descobertas: ultrapassados os meses da chegada, os percursos repetidos nos meses de outono e inverno eram já conhecidos e sem segredos, fazendo-se praticamente de três ou quatro destinos, entre casa e a universidade, entre a universidade e alguns centros comerciais, entre o supermercado da esquina e o regresso ao ponto de partida.

Agora, quando ficou o sol, quando os amigos que se mantém até hoje já eram, naquele tempo, isso mesmo, amigos, quando a cidade ganhava um brilho e uma segurança de estarmos no nosso lugar, havia que alterar rotinas e buscar novidades, deixar que o espaço nos envolvesse e nos desafiasse, permitindo concretizar alguns projetos e estender os dias à proporção da luz.
Lembro, particularmente, as caminhadas em grupo para lanches que se prolongavam, em mesas cheias de rostos e de conversas. Terminavam, invariavelmente, em bancos de jardim onde nos sentávamos desafiando mais a falta de horas do que a falta de assunto.

Naquele tempo os nossos dias eram mesmo assim: sem relógio, sem afazeres intermináveis ou inadiáveis e estudar complementava o tempo sem o roubar. As nossas vidas eram, ainda, séries de acontecimentos imprevisíveis mas todos fantásticos, onde os episódios para a frente eram ainda muito mais do que os que estavam para trás. As ideias pareciam imutáveis e ilimitadas e todos, e cada um de nós, se via invencível e insuperável.

Com os anos, eu e todos os outros ganhámos idade e (alguma) consciência, perdemos certos limites mas lucrámos com saber, trocámos verdades absolutas por conquistas impossíveis de roubar. Tornámo-nos adultos sem o admitirmos e cortámos pedaços do nosso tempo para neles colocar responsabilidades.

Mas a primavera volta, ano a ano. Numa espécie de oportunidade anual para nos renovarmos com a natureza. Numa montra de descobertas e de criações. Num ciclo de vida que leva e traz momentos, verdades e até pessoas. E é nesse reciclar do tempo que se ganham possibilidades, numa tentativa permanente de ainda sermos jovens estudantes que olham, pela primeira vez, a cidade, sugando os dias à medida do sol. À medida do melhor das nossas vontades. 


Ilustração - Catalina Estrada

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