02 março 2011

"Por falar se ganha, por falar se perde"

Correu a atravessar a estrada, desprezando a passadeira e o sinal vermelho para peões. Havia uma ou outra prioridade a cumprir, acima das regras de trânsito ou das normas do bom senso. Nos ouvidos, para lá de uma buzinadela aflita e de um grito de criança com birra, Eva trazia duas ou três frases ditas há minutos, escutadas sem querer ou memorizadas sem esforço. A verdade surgia-lhe sempre assim: em acasos sem acaso, em segundos escassos de gente apanhada desprevenida.
Depois, não havia regresso ao minuto anterior ou à memória passada, não havia botão que apagasse partes do cérebro ou recuasse o filme, não havia volta que se desse que a levasse para trás e a deixasse andar para a frente. Então, era preciso agir. E, voltando a mudar de rumo sem obedecer ao trânsito ou ao destino, Eva pensou.

Ou

Entrando pela porta da frente, subindo as escadas em lanços de dois e agarrando o corrimão entre o polegar e o indicador, admitiria que trazia a memória mais pesada e a língua salgada com aquilo que, a partir dali, saberia para sempre. Colocaria hipóteses em catadupa: teria ouvido bem? Seria essa afinal a verdadeira história? Tinha valido a pena calar-se quando lhe pediram segredo e arrancar a pele das feridas antes delas secarem? Não daria espaço nem tempo para respostas, muito menos para afagos na cabeça ou pressões nos ombros. Falaria sem parar, acrescentando em vez de pontos finais palavras, para ela, insultuosas como “mentira”, “castigo” ou “pena”. Seria capaz, até, de lançar raios de terror pelos olhos e sentir-se vitoriosa e forte, capaz de aguentar todos os ultrajes seguintes e atacar o medo por todas as frentes. Bateria a porta depois do pé, num gesto de desafio, e desceria as escadas em pulos, desta vez sem precisar sequer de tocar no corrimão.

Ou

Diria o seu nome pelo intercomunicador, adiantando logo que precisava de conversar, que tinha dúvidas e desconfianças que não a deixavam acalmar. Ouviria, assim, as expressões de sempre, daquela vez mais murmuradas, numa tentativa dele de apaziguar o ataque e controlar o momento. A partir dali, ele estaria a agarrar-lhe o pulso e a controlar-lhe a respiração, congelando-lhe o olhar num controlo sobre-humano que ela nem entendia. Ainda tentaria dizer uma ou outra frase, acabando por misturar sílabas e substituir advérbios por adjetivos. Até se dar por vencida, ainda recuaria a pele e elevaria a voz.


Num ou noutro "ou", tudo o que fosse dito seria testado, manipulado, subvertido, descontextualizado até, perdendo depois toda a força e toda a razão.


O carro travou a milímetros da sua perna esquerda e vendo o esbracejar indignado da condutora enervada, Eva levantou o braço e subiu o passeio. O prédio em frente, a porta entreaberta, o dedo na campainha, falar ou calar, ganhar ou perder. Voltou atrás, esperando o verde do sinal dos peões e atravessando retilineamente a estrada, espaçando as pernas para, apenas, pisar as riscas brancas.

1 comentário:

susana canhola disse...

Como eu costumo dizer, a boca que diz que não, diz que sim.
Acho que vale sempre a pena tentarmos a nossa sorte, afinal o não está sempre garantido, já o sim.... pode mesmo acontecer!!!!