16 abril 2011

Coisas do meu talento






Era uma bailarina minúscula, de saia de tule aos folhos e collants cor-de-rosa, cabelo arrepiado e queixo altivo, sempre na posição certa, de pés em V, colados nos calcanhares, e braços arqueados num gesto delicado. Os anos em que dancei ballet fizeram de mim uma menina feminina e suave, contida e perfeccionista. Residia todo o encanto naquelas manhãs de sábado de mão na barra de madeira e olhar no espelho. Dançar era uma forma de comunicar, era uma linguagem secreta, num diálogo íntimo de uma criança sempre demasiado metida dentro de si própria.
Com os anos, com a idade, com as exigências da escola e as contingência de morar longe dos grandes centros, deixei a dança para outros destinos.


No fim da aula, ela distribuía as cenas para o dia seguinte. Entre retalhos de telenovelas brasileiras e excertos de peças de teatro, os diálogos envolviam discussões ou desabafos, banalidades ou revelações que mudavam a história. Em menos de um ano de curso de representação, eu já tinha dançado com um par numa cena de sedução, já tinha perdido um filho e chorado por isso, já tinha trocado estaladas num momento de fúria e descontrolo, já tinha adormecido e acordado, frente às câmaras, aos professores e aos colegas. Mas, desta vez, a aula envolvia beijos e eu, afundando-me na cadeira, não estiquei o braço para receber as minhas folhas e, naquele instante, desisti de ser atriz.


Enquanto eles falavam, as perguntas sucediam-se na memória, sem rabiscos no papel ou dúvidas que engasgassem as frases. Naqueles segundos, de gravador na mão e entrevistado disponível, eu era a jornalista destemida, sem espaço para hesitações, vergonhas ou embaraços. E corria bem. Saía a pergunta e chegava a resposta. Numa tarde de calor, percorri ruas onde nunca tinha andado para tentar a sorte numa embaixada de um país distante. Lá dentro, levaram-me por túneis e elevadores simulados, até alguém que falando mal qualquer língua que eu entendesse, se recusou a responder a perguntas ou a ouvi-las, até ao fim, sequer. Sem saber regressar sozinha ao portão de saída, segui o caminho labiríntico frustrada pela história que não levava comigo. Uns dias depois, na imprensa concorrente houve alguém que assinava um artigo idêntico, que tinha feito as perguntas até ao fim e que teria percorrido aqueles túneis levando a história até ao portão de saída. Acho que foi aí que percebi, que certo jornalismo vai muito além de fazer perguntas e receber respostas, de imaginar o artigo e fazer a história. E mudei de sonho.


Aos 14 anos escrevi um livro. Sei que a personagem principal se chamava Ana e era uma adolescente como eu. Imprimi tudo e enviei para as editoras que conhecia. Por aquela altura, ganhei alguns concursos pelas coisas que escrevia, mas aquele meu projeto de livro mereceu cartas de agradecimento ou o silêncio apenas. Com o tempo, esses textos perderam-se nas disquetes que hoje já nem funcionam e escrever foi o talento que restou quando deixei de calçar as sapatilhas de pontas e rodopiar em frente do espelho, quando larguei as máscaras e desmarquei os castings, quando arrumei o gravador e fechei os pontos finais. Tudo porque ficava sempre aquém do outro, do lado. Da menina que dançava melhor em toda a classe, da atriz que tão naturalmente beijava como gritava, da jornalista que não tolerava perguntas sem resposta.
E, por cada livro que acabo de ler, por cada escritor que conheço e me desarma, morre um bocadinho do sonho final, para resistir a dúvida:

Todos temos um talento. Onde andará o meu?


Ilustração - Alejandra Karageorgiu

2 comentários:

Anónimo disse...

O teu talento? Reside aqui, nos belíssimos textos que escreves e que encantam quem (como eu) os lê e segue. E Na pessoa sincera, genuína e bonita que acabaste por te tornar com a idade e com as voltas e reviravoltas da vida. O ballet clássico não pegou? O "acting" foi uma miragem? O jornalismo de pacotilha não deu os frutos com que um dia sonhaste? Não te martirizes com isso. Não és a única. Mas a tua escrita é deveras singular (mesmo que não devidamente reconhecida como tu gostarias). Agarra-te a ela, e a tudo mais que te faz feliz, levanta bem a cabeça e o queixo que o caminho é em frente. Como dizem aqueles quatro senhores que um dia também acharam que sabiam fazer música: "o passado foi lá atrás".
Keep it up!
Pedro

Anónimo disse...

Realmente, a escrever assim que talento procuras mais????
Continua, adoro ler os teus textos e como eu muitas pessoas mais. -Beijinho Gena