
Os remoinhos do cabelo, a forma do rosto e a rebeldia que o faz correr pela casa, correr pelos dias, falar trinta palavras imperceptíveis por minuto e dar pulos gigantes e destemidos. O Tigy é assim. Um rapazinho completamente arrapazado. Um menino, pelo que me contam, em tudo igual ao Pai quando ele tinha esta idade. O ser mais parecido com a Mãe ou com o Pai facilmente se distingue nestes traços e ao lembrar-me enquanto criança sempre percebi que o meu filho nada tinha de mim.
A Beguinha era a criança que brincava dias inteiros fechada no quarto completamente sozinha. A menina que a mãe espreitava a meio da tarde certificando-se que ela se mantinha ali, no quarto, com as suas bonecas dispostas em fila como numa sala de aula.
Anos depois, a Beguinha era aquela que tinha torcicolos por ler livros inteiros de seguida, deitada com o pescoço debruçado no braço do sofá. Outros tempos volvidos, a Beguinha era a adolescente que jogava fins-de-semana inteiros o mesmo jogo de computador até conseguir passar mais um nível. Sempre mais um nível.
Pelo meio houve a Beguinha que fazia programas de rádio num gravador rudimentar e, a culminar tudo isto, existiu também a Beguinha que escreveu um livro e o enviou para umas quantas editoras. Sim. Aos 14 anos.
O Tigy muda de brinquedo a cada dez minutos e desmonta os bonecos apenas para nos pedir para o ajudarmos, incluindo-nos, como se nem notassemos, nas brincadeiras. O Tigy nunca está calado. Descreve, à maneira dele, tudo o que faz com o barco dos piratas, as histórias que inventa entre os meninos perdidos, a Wendy e a Sininho, as lutas de espadas entre o Capitão Gancho e o Peter Pan. O Tigy vê várias vezes seguidas o mesmo filme ou, então, vê várias metades de filmes de seguida. O Tigy vira a página do livro quando o texto ainda vai a meio e, para ele, pintar um desenho é cobrir um qualquer boneco com dois, três traços no máximo. Para o Tigy os dias são cheios de brincadeiras diferentes, que se sucedem num turbilhão de risadas, como se a diversão que se seguisse fosse sempre melhor que a anterior.
Há uns dias, o Tigy não me deixou fechar uma porta porque o Manel ainda não tinha passado. Segurei a porta, fazendo-a descrever um ângulo recto, e deixei passar o Manel, com todo o cuidado para não o trilhar. Há uns dias, o Tigy brincou comigo e com o Manel na sala da nossa casa e guardámos para ele o lugar mais confortável no canto do sofá. Há uns dias o Manel comeu à nossa mesa e até já passeou connosco, sentado no banco de trás do nosso carro.
A Beguinha na idade do Tigy ficava sentada numa manta no chão do pátio da casa da avó e falava tardes inteiras com o Pedro e a Paula. Todas as tardes o Pedro e a Paula eram atropelados pelo triciclo da mana e todas as tardes a Beguinha chorava porque a mana tinha passado por cima deles.
O Pedro e a Paula não existiam.
O Manel também não existe por aqui.
Então, por estes dias, eu percebi no que é que a Beguinha e o Tigy se parecem mais. Assim, eu hei-de continuar a falar com o Manel dele, a pôr-lhe o cinto antes de o carro andar e até posso arranjar-lhe um prato para jantar. Porque, um dia destes, pode ser que o Tigy se sente ao colo da Paula e deixe o Pedro empurrá-lo no baloiço. E juntos vejamos que somos tal e qual. Nós dois e tanta imaginação.
Ilustração - Catarina Fernandes