23 julho 2014

A Minha Crónica na Lx4KIDS #5



Dormir sem sono

Todas as noites a história repete-se: “Mais 5 minutos, Mãe!”, pede o meu filhote quando já está ultrapassada a hora certa de deitar. Inevitavelmente, recordo-me bem de ser da idade dele e em nada temer aquele momento. Dali para a frente, das 10 da noite para a manhã do dia seguinte, do sofá da sala frente à televisão, para o lusco-fusco do quarto, começava todo um outro mundo para mim, onde tudo, mas mesmo tudo, era possível.

Foi nessas noites que desenhei muitas das histórias que iria viver quando fosse grande, adulta, mulher, independente, profissional, senhora de mim, plena de possibilidades e potencialidades. Ir deitar significava entrar numa outra idade, mais lá para a frente, e decidir, eu mesma, tudo o que iria viver. Aconchegada na cama, de luzes apagadas, voltava cada noite ao ponto onde tinha deixado a história – a minha – no dia anterior, adormecendo sem dar conta, embalada pela magia que tem a imaginação. Aos 8, 9, 10 anos, acreditava que o percurso seria assim: uma linha reta, definida, certinha, um caminho escolhido, consentido, pensado e concretizado, sem grandes curvas, sem maiores desvios. Então, ouvir a minha Mãe anunciar a hora de ir para a cama era um ato instantâneo. Sem adiar, sem passos lentos no corredor, sem lamentos, eu deixava mais um dia de escola, mais um final de tarde de trabalhos de casa, mais um jantar em família, mais um serão perto da TV, para entrar num segredo só meu, onde mandava eu e a minha cabeça, onde crescia 10 anos em poucos segundos.

Noite após noite, o Tiago resiste à ida para a cama com todos os seus argumentos e contestações. Tentando convencer-me que não terá sono absolutamente nenhum na manhã seguinte, jurando até que se irá levantar à minha primeira chamada. Torcendo-lhe a vontade, lá lhe concedo os 5 minutos da praxe e vamos os dois até à sua cama para lermos um capítulo do livro do momento e, depois, nos abraçarmos e beijarmos como se um de nós partisse numa grande viagem. Deixando-o deitado, disposto a adormecer, rodeado de bonecos e com uma luz fraca acesa, saio do quarto sempre a pensar que devia falar-lhe da magia que ele pode descobrir naquele momento, enquanto adormece e não adormece, enquanto o sono não vem e a manhã ainda está longe. Chego mesmo a travar os meus passos e a ponderar voltar atrás, sentar-me na beira da sua cama e relatar-lhe como eu vivi aqueles momentos quando era da idade dele, como eu conseguia ser tão feliz e tão infinita com aquilo que as crianças mais detestam: ir para a cama.
Nunca o fiz. Ainda não o fiz.

Na verdade, no final das contas, quando chega a minha hora de deitar, quando sou eu que pouso na mesa de cabeceira o livro do momento, quando se apagam as luzes e o dia termina, eu faço o caminho inverso, retrocedo 15, 16, 17 anos na idade, procuro as histórias no teto escurecido do quarto, aconchego-me nelas e deixo-me embalar pelo melhor que tem a imaginação. Então, perto muito perto de adormecer, sei que o Tiago não precisa do truque das minhas noites de infância, talvez porque os dias que ele vive são muito melhores do que todos os que eu possa ter imaginado quando tinha a idade dele. Com certeza, porque tudo o que espera o Tiago enquanto está acordado o faz muito mais feliz do que qualquer história criada, empolada, inventada, moldada e, afinal, fechada num tempo impossível, vivida enquanto está deitado na cama sem conseguir dormir. E é assim que eu adormeço tranquila, que eu adormeço feliz, por saber que a vida que o meu filho vive é muito melhor do que qualquer uma que ele tenha guardada, bem trancada, na sua imaginação.

in Lx4kids Julho/Agosto 2014

16 julho 2014

Conversas com ele

Cenário rotineiro, sentados no sofá ao serão. Eu agarrada ao computador e o Tiago vidrado na Psvita. Ambos com um olho, de quando em vez, na Tv.

O Tiago pergunta diariamente:
- Mãe, porque é que tens de trabalhar em casa?

Eu respondo-lhe repetidamente:
- Porque o dinheirinho faz falta, para pagar o colégio, a casa, comida, férias, roupas, as coisas que gostas e que precisamos...

Na noite seguinte, a pergunta voltava.
A minha resposta também.

Há dias mudei a resposta:
- Para ser mais feliz, Tiago. Eu gosto muito dos trabalhos que faço em casa.

 Há vários dias que não me pergunta nada. Encosta-se simplesmente ao meu braço direito, deixando um espaço milimetricamente testado para eu conseguir teclar.