31 outubro 2012

"No intervalo da vida"




Há uma expressão que adotei há vários anos e que, perante histórias dramáticas e cruéis, histórias da vida de todos nós e de tantos que amamos, me faz então dizê-la: "isso é que são problemas".

Há uns dias fui à apresentação do último livro da minha Grande e Querida Amiga Cláudia Pinto. O livro "No intervalo da vida" conta 20 histórias de gente que viveu, ou vive, isso mesmo: problemas. Pessoas comuns, cheias de sonhos e de projetos, algumas delas que eu própria conheço, e que de um dia para o outro se veem face a face com um diagnóstico, com uma doença, com um problema. Um problema que em nada depende do livre-arbítrio, um problema que lhes condicionou os dias, lhes fragilizou o corpo, lhes devastou a alma.

Na apresentação muito se falou de como é difícil e penoso ler aquelas páginas. Como se torna arrasador cada testemunho, cada citação. Mas também se ouviu acerca da força que cada protagonista passa daquelas letras para os olhos de quem lê.

O Tiago, que me acompanhou, não deixou de dizer à autora que, se fosse ele, tirava o primeiro "N" do título. Eu, à saída, prometi ler, numa promessa à amiga feito desafio a mim, leitora, perante ela, a escritora.

Pensei sim folhear o livro, saltar entre o prefácio e os agradecimentos, entre a contracapa e uma ou outra ilustração. Foi o que fiz, à noite, já deitada. Adormecido o filho ao meu lado, esquecida a hora que naquela noite até mudava. Madrugada dentro li história a história. E mentiria se dissesse: quase sem notar. Notei sim. Cada uma que passava deixava três coisas: a raiva da injustiça, o medo da proximidade e a cada vez maior relativização dos problemas da (minha) vida.

Chorei muito. Muito mesmo. Como já nem lembrava o que era chorar. Lembrei sim um tempo em que chorava, em que também eu estive num intervalo da minha vida, que pode não ter sido semelhante aos testemunhos de cancro ou de doenças raras da infância que lemos no livro, mas que foi o meu problema, que foi a causa de muito tempo útil e bem desfrutado que já perdi. Nos intervalos dos protagonistas do livro da Cláudia há sempre espaço para enaltecer os profissionais das mais variadas especialidades médicas que acompanharam, ou acompanham, cada um dos casos. Eu também tive quem me ajudasse. Ela, com certeza, nunca saberá quanto, por muito que esse seja o seu trabalho. Porém, eu lembro a cada momento. E quando por vezes, em conversa, me questionam acerca dos psicólogos, da psicoterapia, das consultas, tenho dificuldade em explicar, resumindo com: "comigo resultou". Hoje, que já não a visito há vários meses, confesso as saudades. Mesmo sabendo que não preciso de voltar aquele sofá, mas que a convidava para um café numa tarde destas. Todos os dias, das pequenas agruras às grandes angústias, sei que a forma como reajo, o modo como dou a volta ao que penso e ao que sinto, a fronteira que estabeleço entre a ação e a reação, se deve a tudo o que aprendi com ela, em vários anos de altos e baixos, que ela sempre descrevia como uma espiral, sem retrocessos.

Em tantas histórias escritas pela Cláudia, neste livro tão marcadamente seu, os protagonistas dizem que vencido o intervalo, olham agora os dias, as dificuldades, os obstáculos, as dúvidas, com uma nova perspetiva, aquela que lhes deu a doença: o verdadeiro valor de viver.

Apesar da hora tardia, dos olhos cansados (das lágrimas ou da leitura), de tudo o que de antigo mas meu aquelas histórias foram buscar, não apaguei a luz sem acabar o livro. Preferia sofrer tudo numa noite só. Remexer nos fantasmas e nas cicatrizes numa única vez.

Antes de dormir lembrei-me da frase, lembrei-me de como tantas e tantas (e tantas) pessoas que conheço deviam ter este livro junto à cama, dentro da mala, no carro ou debaixo do braço, para saberem que aquilo é que são problemas. O resto resolve-se.


Obrigada Cláudia.
Muito obrigada.




Ilustração - Josef Engelhart

2 comentários:

Anónimo disse...

Há vinte e sete anos atrás também eu tive um intervalo na minha vida.
Meses passados na cama do Hospital dos Covões, com duas filhas pequenas sem ordem para as abraçar, sem saber o dia e a hora a que me iam sujeitar a uma intervenção cirurgica que podería vir a ser fatal.À minha volta, quase todos os dias, a equipa médica reunia para mais uma decisão ....Operar sim ou não??? As opiniões divergiam...
Se DEUS me dotou de uma boca e de dois ouvidos, era para eu falar pouco e ouvir muito,mas percebendo pouco daqueles termos técnicos.
Vi durante este tempo de "repouso" colegas de quarto a partirem para sempre...
A minha angústia aumentava dia a dia , pensando na minha família que me amava e que estavam com os braços atados...
Até que um dia, o chefe de equipa, o Dr. Cabrita, abeirou-se de mim e com um ar preocupado disse-me:
___ Amanhã vai para o bloco operatório...
O mundo desabou sobre mim.
Dormi mal, acordei cedo , liguei um pequeno rádio que me acompanhava e foi então que ouvi Rui Veloso interpretando " Porto Covo"...
Entretanto, veio a enfermeira, levou-me, entrei naquela sala fria, com tantas luzes a iluminarem- me a alma e "adormeci" durante seis longas horas.
Sofri, sobrevivi... Mas, o mais importante, é que o meu tempo de validade " dez anos" ainda não expirou.
Estava escrito que eu merecia ver as minhas filhas crescerem, ser feliz e ter o prazer de amar mais dois amores da minha vida: os meus netos Tiago e Maria.

Tua MÃE

LR disse...

LINDO, LINDO E SEM PALAVRAS. SÓ LÁGRIMAS.
UMA AMIGA