31 janeiro 2011

"Quem com ferros mata, com ferros morre"


Eva sabia que não resolvia nada, nem corrigia sequer. A vingança não era a melhor das soluções, não era o plano a cumprir. Mesmo assim, ela experimentou o seu sabor. Fez e refez o percurso na memória. Ensaiou os diálogos. Juntou todas as provas num mesmo lugar, certificando-se, peça a peça, que nada faltava, que não havia falhas capazes de pôr em causa a veracidade dos factos. Guardou até umas calças e uma camisola grossa, para aquele dia. Adivinhando um dia de chuva e frio, de um Inverno em curso. Viu-se na pele daquela mulher insensata e inconsequente, disposta a tudo para amargar a história e dissecar a ferida, abrindo outra. Certas noites adormecia dentro do plano e dormia com ele. Deixando-o ferver por entre os sonhos, tornarem-se uma mistura esquisita de gente com rostos trocados e acontecimentos misturados. De manhã, as ideias dissipavam-se com o vapor do banho e mostravam-se absurdas e mesquinhas, apesar de nunca perderem o maior dos sentidos.

Durante o dia cozinhava ódios e angústias de cada vez que perdia a razão, para se ver acompanhada, para que nada do que sentisse fosse em vão. Para atirar para fora de si a culpa ou o vazio.
Eva não queria perder, mas cumprir planos perversos exigia doses de coragem, ou de desprezo, ou de maldade, que ainda não tinha. Reunia uma lista imensa de razões que diziam que sim e de juízos que mostravam que não. Vivia em círculos desenhados na cabeça à volta de um tema que enjoava e enojava, que a fazia vomitar de raiva e rancor. Sabia que quanto mais cresciam os dias e as distâncias, mais se afundava encolerizada, respirando com dificuldade por entre os espaços em branco da memória. Terminava os dias com o plano definido e amanhecia, cansada, com tudo desfeito.


Começou a chover no preciso instante em que atravessou a rua, longe da passadeira, puxando as mangas da camisola grossa para proteger as mãos do frio. Repetia baixinho o nome das ruas que tinha de percorrer até lá, para não virar  numa esquina errada. E quando chegou, não precisou de dizer nada, nem abrir as folhas ou se desdobrar em respostas. A história aparecia refeita a partir dali.

29 janeiro 2011

Olha

eu estou sempre um passo à tua frente.
Por vezes, imagino-me até uma espécie de nuvem que
acompanha os cenários, as situações, os diálogos,
o sono e os momentos vãos.
Fico sempre indecisa entre cumulus e cumulonimbus.
Oscila com o dia ou com o passo que dei:
às vezes sei de coisas boas,
às vezes sei de coisas más.
Mas olha para cima
que eu estou lá.

26 janeiro 2011

Coisas do meu humor



Já tive um jogo de computador que jogava, precisamente, quando estava mal humorada. O jogo era um Tetris mas especial: quando se completava uma linha, seguia-se um conjunto de bombas que explodiam algumas das peças acumuladas no fundo. Não recordo já o nome do jogo, mas consigo ouvir ainda o som das bombas a rebentarem.

Já tive uma canção que ouvia, insistentemente, quando estava mal humorada. Alto. Muito alto! Repetidamente. Os sons daquela voz a doerem nos ouvidos, a ganharem formas e a perderem-nas de seguida. Quanto mais alto mais forte, quanto mais vezes mais perigoso e quanto mais insensato mais real.

Já tive um conto que fazia ainda mais sentido quando estava mal humorada. As palavras escritas nos lugares certos, alinhadas num rumo definido, que naqueles momentos assumia um nível de tragédia e terror imenso e gigante, maior do que as páginas, maior do que a história.

Já tive um percurso que fazia, unicamente, quando estava mal humorada. Seguia a pé, em passo sincopado, exagerando na força quando chegava uma ou outra subida. Passava nas passadeiras pela mesma ordem na ida e no regresso e mantinha as mãos nos bolsos e um zumbido nos ouvidos, uma espécie de banda-sonora do caminho.


Já tive uma ou outra razão para estar mal humorada, mas nunca tinha caído nesta estranha sensação de não estar mal humorada por coisa nenhuma mas estar mal humorada por tudo e por nada. Como se procurasse nos outros e na rua e no tempo e no que for, motivos para intensificar esse nervoso miudinho que parece um rastilho... prestes a rebentar. Como se este estado não fosse consequência de nada mas uma fatalidade, um vírus, uma inevitabilidade. Como se eu estar mal humorada não fosse culpa minha, nem fosse culpa da vida, da crise ou da vaga de frio, fosse simplesmente a melhor das desculpas para esconder o medo do vazio. Porque antes mal humorada que coisa nenhuma, antes mal humorada que nada.


25 janeiro 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #9

A pergunta:
Mãe,
tu achas que as meninas conseguem ganhar aos rapazes?


A indignação:
Claro que sim, Tigy!

A opinião:
Eu acho que não.
Elas são tão fraquinhas...

24 janeiro 2011

Por acaso

consigo distinguir bem as fronteiras entre o "fazer bem" e o "fazer mal", entre o "agir" e o "reagir", entre o "anda cá" ou o "deixa estar".

Por acaso acho que é um dos poucos talentos que tenho.
E, dentro de acasos destes, não me parece nada por acaso.

22 janeiro 2011

A guardar



"Changed everything.
Because suddenly you have an individual in your life that is more important than you are."


in "Sanctuary: Lisa Gerrard A Portrait by Clive Collier" (2007)




Belo. Silencioso. Íntimo.

21 janeiro 2011

Uma escolha e uma história #5

Uma comida



Às quartas-feiras as aulas acabavam à hora de almoço e era o meu avô quem me ía buscar, esperando no portão do colégio, dentro do carro, para depois nos levar aos dois até casa, seguindo por ruas alternativas, acenando a todos os velhotes de boina que encontrávamos no percurso e colocando sempre o carro em ponto-morto nas descidas, para poupar gasolina...
Era o melhor dia de toda a semana. Lembro-me que essas manhãs de escola passavam num ápice, havia até uma aula de Físico-Química no laboratório e, para além de ser a disciplina que menos gostei em toda a minha vida de estudante, aqueles frascos, tubos e experiências esquisitas (de que nunca tirei qualquer efeito) acabavam por ser o cenário das listas infinitas que rabiscava nos cadernos com todos os planos que tinha para uma tarde tão gigante, como eram as tardes de quarta-feira.

À chegada o almoço estava já pronto e era (quase) sempre aquele: frango estufado, com puré de batata e ervilhas. Eu, que tinha fama de comer mal e pouco, deliciava-me com aquele prato, acompanhado com pão com muito miolo e 7up. Em casa dos meus avós havia sempre sobremesas às refeições - arroz-doce, aletria, pudins - e havia sempre pressa, porque a mercearia deles estava aberta, sem horário de descanso ou pausa para refeições. A minha avó passava a maior parte do tempo à porta da sala, vigiando a loja e recolhendo os pratos quando ainda mal tínhamos pousado os talheres.

Escapava-me para casa, no piso superior, logo que o almoço acabava e por lá, sozinha, perdia a tarde entre as minhas brincadeiras e os meus vícios, com o computador, a televisão, os livros e os diários. Quando escurecia não tinha feito nada do que guardava para as tardes de quarta-feira e voltava a listar pensamentos cheios de projectos para a semana seguinte, quando tocasse e a aula de Físico-Química no laboratório acabasse, o meu avó me esperasse no portão, viéssemos em ponto-morto nas descidas até casa e eu comesse o prato cheio de frango estufado, com puré de batata e ervilhas.

Em sextas-feiras como a de hoje - com a perspectiva de um fim-de-semana gigante à frente, cheio de tempo para mim, para as minhas coisas e para os meus vícios, que continuam a ser os mesmos - lembro sempre daquelas quartas-feiras, quando no carro, entre o trabalho e a minha casa, listo mentalmente todos os projectos que guardo para estes dias. Quando escurecer no domingo, grande parte voltarão a ser apenas isso mesmo, projectos, e entre eles ficará aprender a cozinhar frango estufado, com puré de batata e ervilhas com o sabor tal qual o que a minha avó fazia.

19 janeiro 2011

"Se cair, do chão não passa"



Abria muito os olhos sempre que tinha vontade de chorar. Para não o fazer. E conseguia: fechava os dedos com força e trincava os lábios, até as unhas fazerem feridas na pele das mãos dobradas em concha e sentir o sangue na língua. Eva sabia que não tinha sido feita para sofrimentos vãos ou esperanças inúteis, para esperas ingratas ou injustiças tamanhas. Eva seguia em frente. Eva lutava com o tempo quando ele lhe roubava pessoas, uma ou outra história, um ou outro segredo. Estava habituada a ganhar. E ganhava mesmo. Definitivamente. Mesmo quando havia lágrimas nos olhos ou frio nos braços ou lhe falhavam as pernas ao subir ruas ou ao subir escadas ou ao subir do chão para a cama ou da cama para lado nenhum.
Os dias eram feitos disso: da água que não chegava a escorregar pela cara, das feridas nas mãos que não chegavam a sarar, do sangue na língua cujo sabor não cessava.

Como uma dor pequenina que se expande lentamente, que se torna maior do que a força, maior do que os músculos das subidas ou que a teimosia da vontade. Contra os factos ou contra a inevitabilidade, chegou o dia em que os dedos se abriram e cada mão sentiu as feridas da outra. Contra a verdade ou contra o azar, chegou o dia em que os dentes não trincaram a pele e o sangue se viu a humedecer os lábios. Contra a vida ou contra todos, chegou o dia em que as pernas se vergaram, em que os joelhos se encostaram ao queixo, em que as subidas se fizeram de chão.

E quando os olhos se fecharam e, finalmente, sentiu a água num trajecto definido, ela soube que a partir dali tudo iria melhorar.

14 janeiro 2011

Saber de mim?

Estou numa linha de um livro

"Fechar os olhos não muda nada. As coisas não desaparecem pelo simples facto de não as estares a ver. Pelo contrário. Da próxima vez que abrires os olhos, revelar-se-ão ainda piores."

in Kafka à beira-mar (Haruki Murakami)

numa nota de uma música



numa cena de um filme




in The end of the affair (1999)

11 janeiro 2011

Uma carta para... #2

a minha paixão.

Tigy,
Quando não estás na nossa casa, há um sossego pesado e escuro que torna tudo estranho e incompleto. Aos poucos, especialmente ao longo destes últimos quatro meses, construímos uma rotina muito nossa, feita de uma cumplicidade que nunca antes tínhamos criado.
Dizem-me, de todos os lados, que "estás melhor", "mais crescido", "mais calmo" e "mais feliz". E estás mesmo. Estamos os dois e este viver a par que inventámos juntos. Dizem, ainda, que é muito mérito meu e, pela primeira vez na vida, eu concordo. Eu sei que é mesmo verdade. Eu sei que te tenho feito um menino feliz e que tu, finalmente, me fazes sentir mãe. Uma verdadeira mãe. Mesmo que, tantas vezes, até pareça que tu é que tomas conta de mim e não o contrário.
Todos os dias, no caminho entre a escola e a nossa casa, fazemos o "plano", como assim chamamos ao encadeamento de lanche - banho - pijama - jantar - brincar - histórias - cama, com uma ou outra novidade conforme os dias. Falamos ainda do que fica para os fins-de-semana, do que há para comprar no supermercado, do que temos de arrumar em casa e dos sítios a ir em dias próximos. E nunca te esqueces de nada do que falamos.
Contas-me coisas da escola e perguntas coisas da "minha", querendo saber se há cromos novos na caderneta da bola enquanto escondes no bolso um ou outro que trocaste com os amigos e que "Ainda não temos, mãe".
Às vezes perguntas o que eu almocei e insistes que é dia de ginástica: "Vai mãe, é só um bocadinho...".
Comprámos uma toalha nova para os nossos jantares, feita do tamanho do canto da mesa que ocupamos os dois, frente a frente, e as vaquinhas desenhadas no tecido estão estrategicamente a olhar ora para mim, ora para ti, enquanto comemos e falamos, enquanto te vigio e enquanto me dizes, quase todos os dias, "Está delicioso, mãe".
És a melhor das companhias para lanchar. Pedes sempre o mesmo na pastelaria: um café e um pão com farinha, zangando-te quando eu traduzo, para o outro lado do balcão, que é um garoto e um pão sem nada ("Não é sem nada, mãe, é com farinha!").
Falas muito antes de adormecer quando dormimos juntos, perguntas e mais perguntas, e jogamos jogos feitos à medida das minhas insónias e da tua energia. Jogos com regras complexas, que só nós entendemos, e que tu, invariavelmente, ganhas. Normalmente acaba tudo em gargalhadas e em maratonas de cócegas que eu não sei controlar e tu não sabes resistir. Ouvir-te rir, mas rir muito, com todo o tamanho da vontade, faz-me rir também, dessa forma descontrolada que baralha os lençóis da cama e mistura as almofadas.
Aprendemos a dividir o comando da televisão, o espaço do sofá e as prateleiras da estante: entre as minhas coisas e as tuas, entre os meus programas e os teus, entre a minha necessidade de silêncio e a tua sede de atenção. Fazemos acordos e apertamos a mão, combinamos horas e intercalamos cedências, repetimos verdades ("Tigy sabes uma coisa?", pergunto eu, "Ah já sei que vais dizer que me adoras...") e somos surpreendidos por declarações sérias: "Mãe, eu amo-te".
És cada dia mais responsável, mais entregue, mais simpático, mais generoso, mais sensível, mais obediente, mais compreensivo e mais perspicaz: "Mãe tens o nariz vermelho..." e eu respondo "A mãe está constipada...",  "Mãe não mintas, constipado é quando fazemos atchim...".
E nem vale a pena esconder mais nada. Apenas abraçar-te e saber que o mundo inteiro está ali a respirar contigo e que só isso importa.


A falta que me fazes quando não estás é proporcional ao bem que te faz o de vez em quando me deixares, o de vez em quando não ter de inventar histórias por ter o nariz vermelho... como agora.


Da tua
Mãe

09 janeiro 2011

"Se sabes o que eu sei, cala-te que eu me calarei"


No dia em que ele lhe contou toda a verdade, Eva jurou que nunca mais iria falar. Simplesmente perdeu as palavras ou prendeu-as mais fundo do que a garganta, mais longe que o coração. Entre o estômago e a razão. Achou ela que ele faria o mesmo. Por muito que falasse, por muito que continuasse a percorrer as mesmas ruas onde passaram abraçados e a rir das mesmas piadas ditas agora a terceiras pessoas.
Havia um espaço reservado onde o mundo não conseguiria entrar. Onde ela, dominando a mente numa luta feroz, também não mais entraria. Vivendo e permanecendo como parte do seu silêncio. De todo e qualquer silêncio. Guardando para si, e escondendo de todos, o que ficava, agora, para trás, como resto de passado ou traço da imaginação. Dali para a frente, ela viveria fechada numa repetição magoada de dias velhos e gastos de tanto os usar, de tanto os repetir substituindo os dias novos que preferia nunca mais ter.
Aquele era o pacto dela com ele. Aquele era o silêncio dela em troca da verdade dele. Aquele era o futuro dela como paga pelo passado com ele.

Como se valesse a pena, como se compensasse tudo. Mesmo as palavras por dizer. Mesmo o silêncio a arranhar a garganta e a pesar nas costas como se fosse um destino.

Encostada ao corrimão da escada, entre os primeiro degraus estreitos e desnivelados depois da porta, Eva escutava conversas alheias, feitas de paredes surdas e demasiado finas para tamanha crueldade. Aquele era o momento depois da despedida, um tempo de tranquilidade depois de batalhas perdidas. E antes de se calar para sempre ela avisou-o...








Nota - 2011 traz ditados e provérbios populares até aqui. Sempre adorei essas frases vindas de todos os pontos do país e do mundo, que com palavras simples ou grandes trocadilhos conseguem dizer, muitas vezes, as mais duras das verdades. E, nestes casos, até as contradições têm encanto. A partir dessas heranças da sabedoria popular surgirão as minhas histórias. Narrativas da imaginação. Ou talvez não.

07 janeiro 2011

Olha

se um dia eu acordar e tudo o que
ouvir
souber
pensar
adivinhar
pressentir
e vir, com os meus olhos,
deixar de entrar na minha pele, como agora,
e não mais transformar os meus dias maus em dias péssimos,
lembrarei o sabor da felicidade,
apenas por experimentar tal indiferença.

06 janeiro 2011

As perguntas que ele faz
(mas muitas vezes) #8

A reacção:
Olha Tigy,
a Fada dos Dentes deixou uma moeda debaixo da tua almofada!


A questão:
Mãe,
tens a certeza que não foste tu?

05 janeiro 2011

2/3 do meu cérebro são letras de canções





"há dias assim dias de alma vaga tão perto de Deus tão longe de mim sem horas boas nem más sem horas sequer apenas vazio na alma apenas dias assim"

03 janeiro 2011

Gosto Não Gosto

Gosto de gente coerente.
Não gosto de gente que nunca se lembra de nada e usa isso como desculpa para tudo, como se a memória fraca fosse uma qualidade em vez de um irritante defeito.

01 janeiro 2011

Foi então

que o ano começou.
E quando escureceu percebi que:
1 - está tudo exactamente na mesma
2 - tenho 364 dias para mudar isso.