30 maio 2010

Uma canção e uma história #5

Uma canção que me lembra alguém



Às vezes a voz volta. Como um sopro. Como um fantasma do passado. E justifica muita coisa: o que eu era e como me tornei, o que eu queria ser e o que a vida fez de mim. Tudo ganha, assim, sentido. Ou sentidos.
O mundo mostra-se um círculo fechado, perfeito, com causa-efeito, com acção-reacção, com meios que levam a fins. Então, quando a voz volta e eu a deixo entrar, quando o sopro sopra e eu o deixo soprar, quando o fantasma aparece e eu o deixo ficar, eu sou outra coisa diferente e a minha história do passado é a história da minha vida. Uma em que eu e ele até eramos mesmo iguais, em que estar comigo era estar com ele, em que escrever para ele era um encontro com o melhor de mim, em que o vivido era o imaginado, em que o imaginado era o sentido, em que o sentido era coisa disforme, irracional, perigosa.

Há uma história dentro desta música que me lembra mais de mim do que dele. Mais do que fui do que do que sou. Ainda mais do que queria ser do que no que me tornei.
Porque enquanto aquela era a minha história, aquela era a minha pessoa e aquele era o sentido da minha vida, o mundo mantinha-se redondo, realmente perfeito. E eu era feliz. Dentro de uma mentira feia.
Foi dentro desse tempo que fiz as maiores loucuras. Que me ultrapassei. Que dei mais de mim do que tudo o que tinha. Foi dentro desse tempo que descobri os piores caminhos a seguir para a felicidade. Foi dentro desse tempo que aprendi que momentos felizes não dão histórias felizes e que pessoas especiais não dão vidas especiais.

Quando a voz volta e traz o sopro e traz o fantasma e traz todas as histórias e traz aquela que eu fui enquanto me achava a miúda mais feliz do mundo eu consigo sentir, de novo, aquilo tudo, aquela força que eu tinha e perdi, aquela vontade que eu perseguia e esqueci, aquela certeza que eu sentia e que, num momento, acabou.

Deixo calar-se a voz, dissolver-se o sopro, desvanecer-se o fantasmo, apagarem-se as histórias e solto a pessoa. Mais eu do que ele. Mais nós diferentes do que qualquer coisa de iguais.

23 maio 2010

Uma canção e uma história #4

Uma canção que me põe triste




"Duas lágrimas de orvalho
Caíram nas minha mãos
Quando te afaguei o rosto"



Enquanto ela canta, dói tudo. Por dentro. Não há maior dor que se sinta, não há maior mágoa que se imagine. Não há mesmo traços de felicidade no caminho ou lembranças vagas de momentos bons.


"Pobre de mim pouco valho
Para te acudir na desgraça
Para te valer no desgosto."



Tudo escurece em volta. Enquanto por dentro se acendem luzes das mais duras memórias.


"Porque choras não me dizes
Não é preciso dizê-lo
Não dizes eu adivinho"


O mundo está parado e tranquilo, como se tivesse deixado de rodar. Como se não se passasse mais nada. Como se o que estivesse para trás fosse toda e qualquer verdade, toda e qualquer certeza.


"Os amantes infelizes
Deveriam ter coragem
Para mudar de caminho"


Tudo é, agora, inabalável e intocável. Sem discussão. Sem dúvidas. Sem margem para possibilidades. Nunca em tempo algum será possível recomeçar. Ou perdoar. Ou esquecer. Ou simplesmente superar. E ela canta.


"Por amor damos a alma
Damos corpo damos tudo
Até cansarmos na jornada"



E enquanto ela canta, volta tudo. Diminuem-se as esperas em certezas inúteis. Compreendem-se os azares em esperanças impossíveis. E tudo o resto perde sentido. E tudo o que perde sentido se perde de vez.


"Mas quando a vida se acaba
O que era amor é saudade
E a vida já não é nada."



Então, enquanto a ouço, sangram as piores dores do mundo e abrem-se, de novo, as feridas, que são as maiores falhas da vida e as maiores fragilidades de cada história.


"Se estás a tempo recua
Amordaça o coração
Mata o passado e sorri"



E ouvi-la é sempre sofrer com ela. É deixar entristecer. É ver a dor crescer, crescer tanto até se tornar impossível respirar ou sobreviver ou suportar sequer cada palavra que ela diz.


"Mas se não estás continua
Disse-me isto minha mãe
Ao ver-me chorar por ti."



Mas quando acaba, quando a voz dela se cala, quando as palavras faltam. O mundo volta a girar, voltam desejos de futuros possíveis e esconde-se a ferida enquanto se morde a dor.

20 maio 2010

Eu não quero usar óculos

(mas quero que ele queira)



Eu, que nem nunca quis usar óculos, passei as últimas horas a repetir a palavra em frases como: "Tigy, põe os óculos", "Tigy olha os óculos" ou "Tigy cuidado com os óculos".
Não sei bem dizer se o choque foi maior aos 13 anos quando ouvi o médico dizer à minha Mãe "Mas ela não vê quase nada do olho direito!", com o tom mais admirado do mundo, ou há poucas semanas quando ouvi outro médico dizer-me a mim "Acho que o seu filho vai mesmo precisar de usar óculos..."
Sei perfeitamente a sensação que tive a primeira vez que coloquei uns óculos na cara: "Ah! Quer dizer que toda a gente vê daqui para ali?", quando sempre pensei que todos viam o mesmo que eu. E sei, ainda melhor, como durante anos e anos lectivos sucessivos deixava os óculos em casa e copiava pelo caderno da colega do lado, porque da minha mesa os traços a giz no quadro pouco mais eram do que manchas esbranquiçadas.
Esses tempos conturbados no meu relacionamento com os óculos terminaram com as lentes de contacto e o pouco tempo por dia que agora passamos juntos - à noite, já na cama, na hora da leitura - tornaram-nos mesmo bons amigos.

Cá em casa entraram hoje uns óculos novos: pequeninos e arredondados, vermelhos como ele escolheu depois de um dó-li-tá um pouco aldrabado.
Ao segundo episódio do Dartacão, e poucas horas depois da chegada, os óculos já não saem da cara do Tigy e parece-me que as cores da televisão estão até bem mais animadas.



(Antes mesmo dos óculos, o livro "Não quero usar óculos" de Carla Maia de Almeida já era leitura obrigatória na hora de deitar.)

Ilustração - André Letria

19 maio 2010

Uma canção e uma história #3

Uma canção que me faz feliz



Qualquer música com a voz do Sérgio Godinho me lembra dela. Da minha amiga. Da minha Luisinho. Daquela menina de olhos tão verdes com quem troquei cartas cheias de poemas e com quem tive as primeiras conversas sobre livros e sobre as dores do crescimento. Foi com a Luisinho que dividi as maiores confidências sobre amores e desamores, sobre certezas e dúvidas, sobre sonhos e desilusões.

Juntas descobrimos livros antigos no sótão da casa dela e encontrámos por lá frases que reunimos em cadernos que partilhávamos de tempos a tempos. Juntas criámos uma sociedade de "Sonhos&Palavras" que jurámos concretizar. Juntas lanchámos sandes de queijo feitas no microondas e decidimos o que iriamos ser quando fossemos grandes: escritoras. Trocámos diários e prendas - Mafalda Veiga para mim, Pearl Jam para ela - fomos a festas e jantares, dissemos pela primeira vez palavras como cumplicidade e eternidade, compridas de mais para a adolescência. Vimo-nos crescer, dar voltas à vida, mudar de cidade. Assistimos à distância fazendo pela proximidade.

Perguntámos uma à outra que seria isso da vida, do mundo, do passado, do amor, do saber, do sentir, do querer. Questionámos coisas como a felicidade e a saudade. Medimos uma à outra a força das nossas vontades e a coragem que sobrava. Fizemos escolhas e chorámos falhas. Lemo-nos. Escrevemo-nos. E, de tempos a tempos, quando nos vemos temos ainda, no máximo, 17 anos e vamos cumprir com tudo o que está combinado. Vivendo sempre o primeiro dia do resto das nossas vidas.

16 maio 2010

Uma canção e uma história #2

A minha canção "menos favorita"





Podia ser uma boa música.
Lembra até uma idade tão saudosa de tantas mudanças: aos 14 anos deixei uma vida inteira num colégio só de raparigas para entrar numa escola secundária cheia de desafios e de descobertas. Esta música consegue ser o som de fundo desses meus tempos de adolescente. Quando descobri que o mundo não era assim tão cor-de-rosa como o tinham pintado e soube que a realidade era muito mais apetitosa do que viver dentro das fantasias.

Podia ser mesmo uma boa música. Fez parte do alinhamento de um dos primeiros grandes concertos que vi na vida e ainda hoje recordo como as luzes eram azuis e já nem se sentiam as pernas mas apetecia que aquela noite não acabasse nunca.

Podia ser realmente uma boa música, se alguém me explicasse o que é um "piano selvagem" que, ainda por cima, "nos gela o coração e nos traz a imagem daquele inverno".

15 maio 2010

Dizer que não



Nunca foi coisa que eu soubesse fazer. Nem bem nem mal. Simplesmente nunca soube dizer que não.
Quando via tinha dito que sim ou nem tinha dito nada e, seguindo o princípio de que quem cala consente, o mal estava feito. Aprendi mais depressa a fugir às perguntas para fugir à resposta. À única possível. Ao inevitável não. Quando não sobravam talvez ou "fica para depois".

Senti sempre falta dessa capacidade, da linha ténue que divide uma recusa de uma ofensa. Entendi sempre que dizer que não era fazer mal, era ficar aquém, era afastar alguém, era perder algo ou algum momento. E tudo isso era irrecuperável, um único não conseguiria levar de mim para sempre um tempo inteiro de possibilidades.
Consegui, até, durante anos e anos culpar-me dos dois ou três nãos que disse na vida, colocar neles a causa e o fim de todas as desgraças.

O não indo de mim para qualquer lado era coisa terrível, era bala atirada que me matava por dentro. O não vindo dos outros para a minha vida era atitude sincera, era apenas a resposta acertada.

No último Natal a minha Mãe ofereceu cá para casa o livro "Um bom pai diz não". Ainda não o li. Está guardado na gaveta de baixo, lá no quarto, há vários meses. Não sei se é coisa que se aprenda, não sei se vou a tempo sequer, mas estou a pensar abrir o livro e perdoar-me. Por um não.



Ilustração - Bett

12 maio 2010

Foi então

que ele perguntou:

"Mãe, quando estás a dormir com que é que tu sonhas?"

E eu inventei uma história em que ele e eu dávamos um grande passeio de mãos dadas. Acrescentei que o dia estava ensolarado e brilhante e acabei dizendo que estavamos felizes e sorridentes.

A resposta a ele chegou-lhe. A pergunta anda comigo há meses.

09 maio 2010

A guardar

« - Há dez anos, parti um copo e, quando andava a limpar, enfiou-se-me um estilhaço no polegar. Não o consegui tirar e, por causa dos nervos dessa zona, o médico não lhe quis mexer. Ao longo dos anos, de vez em quando doía, mas nada de especial; e o coropo foi-se sempre protegendo daquele vidro. Formou camadas de pele à volta dele até ficar como uma ervilha. Finalmente, um dia, o corpo rejeitou-o. A ervilha veio à superfície e, com a ajuda de sulfato de magnésio, saltou do meu polegar.
- E é essa a sua explicação para o tipo de realidade que estávamos a falar?
- Os estilhaços de vidro podem entrar no espírito, também - disse, e só a ideia bastou para o deixar nauseado. - Algumas vezes são demasiado dolorosos para serem enfrentados. Empurramo-los para as profundezas da mente. Pensamos que podemos esquecê-los. A nossa mente protege-se deles, embrulhando-os em camadas... ou seja, mentiras. E assim, distanciamo-nos do estilhaço. Até que um dia acontece qualquer coisa e, sem razão especial, vem à superfície da consciência. A diferença entre o mental e o físico está em que não podemos aplicar sulfato de magnésio para trazer o estilhaço do espírito ao consciente.
Ele levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro da sala. Esses pequenos estilhaços de vidro a virem à superfície despertaram um pequeno terror. Era como se conseguisse senti-los na cabeça, que estalava como... como um campo de gelo. Seria outra analogia física?
- Está assustado, o que é normal. Nada disto é fácil. Exige uma grande coragem. Mas é altamente compensador. A recompensa acabará por ser uma verdadeira paz de espírito e o reinício de todas as possibilidades. »


in Cego de Sevilha, Robert Wilson, página 249



Verdadeiro. Sensato. Sentido.

03 maio 2010

Uma canção e uma história #1

A minha canção favorita



Cada canção tem um momento dentro de um tempo tão nosso. Uma canção é uma banda sonora de um dia, de uma história, de uma pessoa dentro da nossa vida. Uma canção marca uma vivência, eterniza um sentimento, reflecte um pensamento próprio, uma emoção, uma recordação. E então, quando a canção volta, volta tudo com ela: o momento dentro de um tempo diferente, um dia do passado feito coisa presente, uma história antiga que parece de hoje, uma pessoa metida noutra vida e que já nem é nossa, um sentimento apagado, um pensamento esquecido, uma emoção nunca mais experimentada, uma recordação quase-quase acabada.

Então, a canção favorita não existe. A canção favorita é uma para cada um desses momentos, é uma para cada uma dessas história.
Mas depois, há aquela canção que nos persegue, que fala de nós como se nós fossemos ela, que anda connosco e se atravessa nos nossos dias e acaba banda sonora do filme da nossa vida.
Canções favoritas tenho mil e, cada uma, conta uma história e leva uma pessoa... Mas esta diz

"porque há sempre uma maneira de recomeçar
o que se quiser
há sempre uma maneira de mudar
o que não se quer
há sempre uma maneira de recomeçar..."



e isso sabe tão bem ouvir!